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Revista Salsaparrilha
11 min readMay 31, 2015

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A Metamorfose de Narciso, de Salvador Dalí.

Por Maurício Sellmann

“Você é tão vaidoso / Aposto que você pensa que esta canção é sobre você”, cantou jocosamente Carly Simon. You’re So Vain foi escrita em 1972 quando Simon já havia namorado o astro de Hollywood Warren Beatty. Simon nega até hoje que o ator tenha sido seu muso, mas a verdade é que Beatty cabe no molde feito uma luva.

Ele teve oportunidade de compartilhar seu narcisismo com o público pelo menos duas vezes. Em Shampoo (1975), filme de Hal Ashby, ele é um cabeleireiro egoísta cercado de beldades (Julie Christie, Goldie Hawn, Lee Grant) na Los Angeles da década de 60. Quinze anos depois, ele estaria atrás das câmeras filmando a extravagante adaptação de uma tira de quadrinhos da década de 30, Dick Tracy (1990). Não satisfeito em mostrar seus talentos como diretor e produtor, ele se escalou como o herói perfeito, disputado por mocinha e vilã, e temido pelos vilões — os quais, aliás, usavam máscaras de látex pesadas que deformavam seus rostos, reforçando o contraste com o mocinho fotogênico e incorruptível. Aposto que Beatty pensava que aquela canção era sobre ele.

Pode-se arriscar que o diretor era tão apaixonado por si mesmo que só poderia ver seu reflexo na lente das câmeras. “É que Narciso acha feio / O que não é espelho”, cantaria Caetano Veloso em Sampa. Igualmente, o personagem Jacobina, do conto O Espelho (1882), de Machado de Assis, recupera a razão de viver quando passa a vestir sua roupa de alferes da Guarda Nacional para olhar-se por horas no espelho. Sessões ao espelho também eram o ritual diário da Rainha (Charlize Theron) de Branca de Neve e o Caçador (Snow White and the Huntsman, 2012). Para a pergunta “Existe alguém mais belo do que eu?”, a resposta deveria ser invariavelmente “Não”. (Mas, ei, é Charlize Theron! Quem sou eu para discordar!) Para Narciso, sujeito e objeto são obrigatoriamente a mesma coisa.

A versão definitiva da lenda de Narciso — mas não a primeira — nos chega pelas Metamorfoses do poeta romano Ovídio. Ele era filho de uma ninfa das montanhas. Sua perfeição física o tornou objeto de desejo de homens, mulheres e afins, mas o rapaz não se interessava por ninguém, vivendo num tédio eterno de existencialista francês. Eco era uma ninfa cuja voz, presente de grego da ciumenta deusa Juno, apenas repetia as últimas palavras que outra pessoa falava. Apaixonou-se por Narciso, foi rejeitada por ele e definhou até que sobrasse de si apenas a voz. Vendo isto e respondendo aos pedidos de outro pretendente desprezado, a deusa Nêmesis resolveu vingá-los: colocou no meio do caminho de Narciso um lago, onde ele, ao parar para se refrescar, viu a própria imagem refletida. Apaixonou-se pela primeira e última vez. Rasgou a carne com as próprias mãos em desespero por não ter jamais o ser amado. Morreu ali mesmo, esvaindo-se em flor a pedido da comovida Eco.

Narciso por todos os lados.

Preste atenção na famosa pintura de Caravaggio sobre a lenda, realizada no fim do século XVI. Narciso está inclinado sobre o espelho d’água, mirando seu reflexo. Não há mais nada ao redor. Para o jovem, o mundo se resumia agora àquela imagem que o fitava de volta. Esta é a perspectiva dele, imerso em seu universo particular.

Já na gravura de Cornelis van Dalen, “Narciso na Fonte”, do século XVII, somos privados da visão do rosto de Narciso ou do seu reflexo no lago. O pintor o retratou de costas, o ponto-de-vista do resto do mundo, que não pode compartilhar o universo restrito do jovem enamorado. Esta é a nossa perspectiva, excluídos. Petrarca, no século XIV, expressou essa sensação num poema para sua amada, que se concentrava em seu reflexo no espelho e nada mais:

“Assim minha vida será chorosa e curta

Vez que um grande pesar raramente se desfaz ou envelhece

Mas eu culpo mais aqueles espelhos fatais

Nos quais te admiraste à exaustão”

(Canzionere, 46)

É assim que se sente também Julien Sorel, o herói de O Vermelho e o Negro (Le Rouge et le Noir, 1830), o romance de Stendhal, quando se apaixona pela filha do Marquês de la Mole. Mathilde de la Mole não dá mole — desculpem, mas o trocadilho além de infame, é irresistível — para o rapaz porque ele é um plebeu e ela, uma aristocrata de berço. Após a última rejeição, Sorel abre o coração para seu grande amigo, o Príncipe Korassov, que lhe passa um diagnóstico na hora: “Ela olha para si mesma em vez de olhar para você, então ela não o conhece. Durante os dois ou três acessos de paixão que ela se forçou a sentir por você, por um grande esforço de imaginação, ela via o herói com o qual ela sonhara, não o que você realmente é…” Sorel só conseguiu conquistar Mathilde porque, segundo os conselhos do amigo, passou a fingir falta de interesse por ela. Sem um reflexo onde pudesse se adorar, a jovem buscou recuperá-lo.

Igual a Mathilde é O Grande Gatsby (The Great Gatsby, 1925) de F. Scott Fitzgerald. O misterioso Jay Gatsby conquista dinheiro e poder durante a Lei Seca norte-americana, mas seu triunfo parece incompleto até ele conquistar de volta Daisy Buchanan. O amor que ele sente pela esposa do milionário Tom Buchanan equivale à aprovação absoluta de Gatsby pela alta sociedade do leste dos EUA. Com suas festas extravagantes e mansão luxuosa, Gatsby apenas quer que todos o adorem.

O dr. Hannibal Lecter (Mads Mikkelsen), psiquiatra e canibal da série de TV (Hannibal, 2013- ), não quer apenas que os outros o adorem; ele quer transformar o outro na sua imagem. É o que ele tenta fazer com Will Graham (Hugh Dancy), o talentoso especialista do FBI a quem ele assessora em uma caçada a um serial killer. Lecter manipula Will para transformá-lo numa versão dele mesmo, que possa entendê-lo por dentro e amar o que vê — uma imagem externa que corresponda a uma imagem interna.

O narcisismo é fruto da auto-estima fora de controle. A literatura médica identifica três características na base do narcisismo como patologia: grandiosidade, falta de empatia e a necessidade em ser admirado. Alguns desses traços também são encontrados em quem sofre de um fenômeno socio-cultural chamado Síndrome de Dorian Gray. Trata-se da necessidade em ser admirado que leva ao medo obsessivo de enfrentar o próprio envelhecimento. Isto faz com que a pessoa procure por todos os tipos de tratamento de beleza. A necessidade de ser admirado guia o metrossexual, o spornosexual, o übersexual. Juventude eterna, buscam todos. Juventude estava também no cerne da paixão do Narciso mitológico. “Certamente não é da minha forma ou idade que foges, e muitas ninfas me amaram!”, protesta o Narciso de Ovídio para o seu reflexo no lago.

Dorian Gray, o belo rapaz eternamente jovem cuja decadência física e moral só pode ser vista num quadro, não é o único narcisista em O Retrato de Dorian Gray (The Picture of Dorian Gray, 1890), de Oscar Wilde. Na verdade, Gray resolve se entregar à beleza eterna e ao prazer sem limites após ouvir Lord Henry, um aristocrata que pode ser visto tanto como um alter-ego deturpado de Wilde como uma crítica à Londres vitoriana. É Henry quem, ao ver o quadro, compara Gray a Narciso. “Porque você é um jovem maravilhoso, e juventude é tudo que vale a pena ter”, afirma.

Na literatura, a ciência encontrou os arquétipos pelos quais poderia identificar distúrbios de personalidade. “Assim como Narciso olhou para o lago para admirar sua própria beleza, redes sociais, como o Facebook, tornaram-se o nosso lago moderno”, sentencia a dra. Tracy Alloway, da Universidade de North Florida, em estudo de 2014. No entanto, tentativas de revelar que a Internet é a causa da explosão de narcisismo contemporânea não têm sido conclusivas. Provavelmente porque o narcisismo é algo latente, à espera do melhor espelho por meio do qual ele possa se manifestar.

O mundo corporativo proporciona um bom reflexo. Uma pesquisa da Universidade de Surrey revelou que é mais provável encontrar distúrbio de personalidade narcisista entre executivos do alto escalão do que entre criminosos numa penitenciária de segurança máxima. Gordon Gekko, o milionário investidor do filme Wall Street (1987), que o diga. Sem escrúpulos ou empatia por ninguém a não ser por si próprio e seus charutos cubanos contrabandeados, Gekko brincava de destruir empresas por uns dólares a mais e encarnava os excessos da década dos yuppies. Seu lema: “Ganância é coisa boa.”

Para os Mestres do Universo de Wall Street, a possibilidade de burlar leis sem ser pego era uma prova de sua superioridade em relação ao homem comum. Patrick Bateman (Christian Bale), o jovem banqueiro de Psicopata Americano (American Psycho, 2000) interpretou essa lógica de forma ainda mais radical: entupindo-se de cocaína e matando gente a granel. Seu amor próprio só dava espaço para que ele visse as pessoas à sua volta como produtos descartáveis. Esse monstro consumista era só a versão mais patológica de um mundo rarefeito em que o sucesso se equiparava a direito natural. Como um amigo de Bateman alardeia logo no início do romance original de Bret Easton Ellis (1991): “Sou criativo, sou jovem, inescrupuloso, altamente motivado e qualificado. Em suma, o que eu quero dizer é que a sociedade não pode se dar ao luxo de me perder. Sou um ativo valioso.”

Se nos guiarmos pela Bíblia, o negócio está entranhado no nosso código genético. O Deus do Velho Testamento foi o Primeiro Narcisista. Criou o Homem feito Sua Imagem e Semelhança (Gênese 1:26). O mundo era para ser, na verdade, um grande espelho. É preciso amar para não adoecer, argumentou Freud. Amor é o que move o Criador neste poema em primeira pessoa de Heinrich Heine:

“A doença foi sem dúvida a causa mais importante

Da minha ânsia em me tornar o Criador

Por obra da criação pude recuperar-Me

Por obra da criação reconquistei Minha saúde”

(Neue Gedichte, “Schöpfungslieder”, vii)

A Criatura não ficou atrás. Primeiro os antigos judeus depois variados grupos cristãos norte-americanos se julgaram o “povo escolhido” por Deus, os únicos mortais dignos de ser seu espelho. A vaidade de ser o centro do universo segundo as cosmogonias clássicas, como lembra Umberto Eco em História da Beleza (Bellezza: Storia di un’idea dell’occidente, 2002), sofreu uma “ferida narcísica” quando a ciência de Copérnico revelou que o homem encontra-se num subúrbio como qualquer outro do cosmos. Até hoje, o ser humano não se recuperou da notícia.

Essa pode ser uma das razões para o sucesso de líderes narcisistas. Do presidente que gostava de ser conhecido como o príncipe dos sociólogos ao outro que transformou o partido numa igreja de um único santo, o mundo adora um líder populista que estimula um culto à sua personalidade. Assim, o Dr. Nicholas Garrigan (James McAvoy), médico jovem e idealista, sucumbe perigosamente ao carisma de ninguém menos que Idi Amin Dada (Forest Whitaker), o presidente plenipotenciário de Uganda em O Último Rei da Escócia (The Last King of Scotland, 2006).

E ai de quem disser que ele estava errado.

Há algo de reconfortante num líder que se apresenta como o grande pai, mas há uma fascinação maior ainda por um líder que se apresenta como o grande ideal. É assim que seus seguidores veem Erik Lensherr, mais conhecido como o vilão Magneto, dos filmes e quadrinhos dos X-Men. Stan Lee concebeu o personagem como um pregador de reação violenta contra o racismo que os mutantes perseguidos sofriam, uma espécie de Malcolm X. Essa sede de justiça, porém, leva-o a pregar até mesmo a escravidão para os seres humanos sem poderes, considerados por ele como inferiores à sua espécie. Mais tarde, Lensherr cria um país exclusivo para mutantes, Genosha, e com a ajuda de sua filha, a Feiticeira Escarlate, até uma realidade alternativa onde a Dinastia “M” manda. Tudo sob a supervisão permanente dele. Afinal, o grande líder é infalível.

A narrativa do líder infalível e viril funciona bem na Rússia da vida real para Vladimir Putin. “A Rússia de hoje, com a sua falta de instituições políticas fortes e um nível muito baixo de cultura política, reage bem a certas externalizações de poder e sucesso. Portanto, se uma pessoa aparenta ser bem-sucedida e esta imagem de alguma forma se sobrepõe às condições sócio-econômicas de milhões de trabalhadores mal-pagos, ela terá êxito como líder”, explica o professor Ilya Yaboklov, do Departamento de Russo da Universidade de Leeds. Ele minimiza o narcisismo do presidente: “Putin é um bom psicólogo [de massas] e sabe como obter apoio. Isso é algo que ele aprendeu na KGB.” Isso não diminui o fato de que Putin usa a imagem de homem forte para perpetuar a sua permanência no poder (16 anos e contando), isto é, ele acredita ser o único homem forte para o país. Carisma e força, pois Narciso precisa ser amado: Magneto aprovaria.

Nada simboliza o narcisismo moderno como o onipresente sinal de “like” ou “curtir” nas redes sociais. E a mais popular maneira de ser curtido é tirando selfies, a versão fotográfica instantânea do auto-retrato e de certas pinturas pré-históricas, como vimos no artigo da semana passada. Quanto mais você se exibir, mais curtidas receberá. Pelo menos esta é a lógica de alguém que já foi chamado o rei das selfies, James Franco. “As curtidas fogem ao controle quando posto selfies minhas e de meus irmãos bonitos”, escreveu ele nas páginas do The New York Times em 2013. “O auto-retrato é alvo fácil para acusações de narcisismo, mas, numa cultura visual, a selfie mostra, não conta, rápida e facilmente como você se sente, onde está e o que está fazendo.” Talvez a conjunção “e” fosse mais adequada que “mas” na declaração acima, mas pergunte aos adeptos dos auto-retratos regulares no Instagram (ou a si mesmo?) e eles verão a posição de Franco com naturalidade.

Kim Kardashian, selfie-made woman, posando para a capa.

Entra em cena Kim Kardashian, a mais célebre celebridade entre as celebridades do século XXI, estrela de seu próprio reality show, atriz, esposa de Kanye West e garota-propaganda da C&A. Kim acaba de lançar um livro com selfies suas que se chama… Selfish! O título é uma brincadeira com o significado original da palavra (“egoísta”) e um possível neologismo derivado de selfie (“com aparência de selfie”). Dona de corpo saudavelmente curvilíneo, onde caberiam três modelos tamanho zero, Kim mostra-se no livro de todos os ângulos possíveis e nas mais variadas situações, em 300 fotos batidas no espaço de uma década. Na capa, ela posa fazendo um biquinho à la Zoolander. Bastou para tornar-se a nova queridinha do mundo da arte. “Kim é a primeira adaptadora e inventora parcial de um gênero”, proclama Jerry Saltz, o influente crítico de arte da revista New York. Kim é uma artista feminista nos moldes das irmãs escritoras Brontë, incensa Sam Riviere no britânico The Telegraph. “Publicidade numa mulher é detestável”, escreveu Virginia Woolf em Um Teto Todo Seu (A Room of One’s Own, 1929). Não mais. Kim Kardashian veio, viu-se e venceu.

Selfish recoloca o ser humano no centro do universo, exatamente como era até Copérnico destroná-lo. “O espelho é coisa boa”, diria Kim.

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Originally published at revistasalsaparrilha.com on May 31, 2015.

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