Heleno Beckmann
Revista Sketchline
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11 min readMay 25, 2017

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EU SOU SPARTACUS

por Lucas Pinto

A palavra-chave das cenas autorais do Brasil inteiro é “resistência”. De norte a sul, pessoas de todas as idades estão lutando por voz e é sobre isso que se trata a música autoral como um todo. No Pará, sempre foi muito difícil conseguir voz para que o país escutasse, mas cada vez mais surgem pessoas que estão dispostas a lutar para serem ouvidas, e a facilidade de criar e expor seu trabalho na internet tem sido um fator cada vez mais decisivo nesse cenário.

Vários estilos musicais cresceram muito por causa dessa facilitação, como o pop, rock, hardcore e metal, que embora tenham sonoridades muito diferentes entre si, em Belém do Pará todos eles se encontram, se misturam e geram novas coisas. Exemplo disto é a banda Molho Negro, que toca um garage rock bem cru, e, mesmo assim, conseguem misturar elementos do rock americano e dos ritmos regionais com maestria.

João Lemos é o guitarrista, vocalista e frontman da banda. Ele já faz parte da cena musical de Belém há um bom tempo e, com o Molho Negro, conseguiu juntar uma galera assídua aos shows e que acompanha seus projetos paralelos. No ultimo show de 2016, no fundo de um barzinho conversamos com ele, sobre o cenário musical de Belém, intercâmbios culturais, influências para o período atual e a tão importante insistência artística.

O novo álbum chamado Não É Nada Disso Que Você Pensou saiu na última sexta-feira, 19. Já está disponível nas plataformas de streaming e vem acompanhado de uma festa de lançamento que vai rolar dia 26, no Ziggy Hostel Clube.

Foto: Raony Pinheiro

Então, João, álbum novo agora em 2017, esses são os planejamentos. Mas sobre os anteriores, o primeiro eu soube que tu produziste fora de Belém. E o segundo?

Então, o primeiro disco do Molho Negro (2012), a gente fez metade dele em Goiânia, com o Gustavo Vazquez. Na época a banda não tinha baixista, então foi só eu e o Augusto (Júnior). Eu toquei o baixo e guitarra e gravei a voz, e ele gravou as baterias. Quando a gente voltou, o Raony entrou na banda e lançamos um EP com 4 músicas: Fliperama Superstar, Mania de Perseguição, Ela Prefere o DJ e Onde Está Meu Mojo, e era o primeiro EP da banda. Aí a gente fez alguns shows, excursionou, e foi tocar em Fortaleza e Natal, quando a gente conheceu o Anderson Foca, do DoSol, e gravamos um outro EP lá, com Aparelhagem de Apartamento, Se Ela não é Lésbica tem Namorado, Uh Baby e THC. E na hora de lançar eu perguntei “o que é que eu faço?” e ele falou “ah, em vez de você lançar outro EP, lança um disco que fica mais robusto e tal”. Então, a gente juntou os dois EPs e fez o primeiro disco da banda, que é uma compilação desses dois materiais, de Goiânia (no RockLab do Gustavo Vazquez) e Natal (no estúdio do DoSol).

Em 2014, a gente resolveu fazer o segundo disco — Lobo -, e dessa vez em Belém, com Ivan Jangoux, na AM&T — um estúdio na Rui Barbosa. Fizemos todo lá, e foi um disco que a produção foi dividida junto com ele, e tem Black Rebel Marambaia Club, Concurso… Agora a gente vai gravar o 3º disco no início do ano, e pretendemos lançar ainda nesse primeiro semestre, provavelmente em abril ou maio.

Aqui em Belém mesmo?

O lançamento sim, mas a gravação vai ser em Goiânia, novamente com o Gustavo Vazquez. A gente voltou com ele lá, a gente gosta de trabalhar com ele. E ele ficou super animado, a gente tava conversando, vendo os estúdios e as possibilidades de gravar, e ele falou “Pô, venham gravar aqui!”, a gente conseguiu chegar num acordo bom e vai ser lá mesmo, em fevereiro. Espero que seja bem legal.

E tendo viajado tanto, deu pra ter uma ideia de como são as cenas musicais desses lugares? Porque, mesmo afastadas do centro, estão sempre fortes e fervilhando que nem Belém, gerando nomes de força em plano nacional, como Camarones em Natal, Hellbenders e Boogarins em Goiânia.

Cara, o que posso comparar entre essas cenas que tu citaste aí, é que parte muito por “culpa” das bandas. Todas as 3 cidades são muito férteis pra música, sempre surgindo algo novo. Em Belém, por exemplo, você tem uma safra enorme: Semente de Maçã, Zeromou (que já é um pouco mais antiga), Blocked Bones (que lançou o primeiro disco), Joana Marte… e isso colabora muito.

Outro fator que eu vejo acontecendo naquelas outras cidades e que tem começado aqui também são os “microespaços”. Por exemplo, tô conversando contigo depois de um show no Black Dog, onde cabe no máximo 200 pessoas, um lugar pequeno, mas que tem dado espaço pra material autoral. Isso é um novo formato que as bandas estão sabendo aproveitar bastante.

Em Belém a gente ganhou a Quarta Autoral, e aí as bandas param de competir pelas festas de sábado e sexta, que são as mais movimentadas, e geralmente as casas já têm suas agendas fixas. Em Goiânia, tem o Complexo, que é um estúdio/pub, onde rola gravações e ensaios assim como o Fabrika por aqui. Isso tem sido uma saída muito importante pras bandas se manterem em cena: na falta de uma casa com estrutura para 350 pagantes, você realiza num estúdio pra 100 pessoas, com o mesmo retorno. Esses “microespaços” são importantes, como também o Costella, em São Paulo, ou com o Escritório, do Lê Almeida, no Rio. Acho que se fosse pra fazer uma previsão pra este ano do que seria interessante pros artistas, seria fomentar esses lugares, e acho que as bandas respondem isso.

E, claro, cada cidade tem seus festivais independentes. Por exemplo, Goiânia tem o Bananada e o Vaca Amarela, com mais de 10 anos. Em Belém, o Se Rasgum tá chegando no 11º ano. Ou seja, são cidades que tem uma estrutura um pouco mais solidificada, então a gente vê o Boogarins tendo carreira internacional mais sólida, viajando, com selo gringo e tudo mais. Isso se deve a isso, à cidade estar preparada para o surgimento de uma banda desse porte/naipe.

É uma coisa que vejo muito. Sempre que tocamos nessas cidades eu percebo isso: as bandas tem uma sinergia muito boa entre si. Por exemplo, você vai ver um show do Far From Alaska, em Natal, e os caras do Red Boots, do Kung FU Johnny estão lá assistindo… e são todas bandas de lá! As bandas de lá gostam uma das outras. Em 2014 a gente tocou no festival DoSol, e foi uma experiência muito doida veres que as bandas que mais enchiam o lugar eram as locais. Em Goiânia a mesma coisa: foi muito doido ver 3 mil pessoas cantando junto no show do Carne Doce, que é de lá.

Foto: Júlia Rodrigues

Tu não achas que dá pra ver isso aqui em Belém também?

Consigo, sim! Por exemplo, o Rubens, guitarrista do Joana Marte, toca bateria com o Zeromou, e o José do Semente de Maçã às vezes toca com eles também, então, isso é muito importante. Do mesmo jeito que a gente precisa sempre de pessoas novas, uma banda nova, tipo O Cinza, que eu conheci esses tempos, e é uma banda super nova, que eu nunca vi nenhum deles tocando em outras bandas, mas daqui a pouco eles vão estar começando a tocar com outra galera, e isso é muito importante.

Outro fator interessante, por exemplo: eu citei os festivais de Goiânia, e aqui a gente tem o Se Rasgum, e durante muito tempo se cobrou do festival essa representação, tipo “todas as bandas novas tem que tocar no Se Rasgum”, e não necessariamente. O Se Rasgum é um festival que já nasceu grande, com Headliners grandes, e é muito complicado pra organização começar às cinco da tarde e colocar as bandas novas, e às oito começar a tocar as bandas maiores.

Tu estás bastante incluso na cena musical, com o Camilo (da banda Turbo), e os dois já estão aí há um bom tempo, então tu já deves ter visto muita gente aparecer, e muita gente sumir também. Como era a cena 10 anos atrás, e o quanto mudou pra cena de hoje em dia?

Uma coisa que eu percebo e acho muito positivo é a facilidade que tem hoje em dia. Há 10 anos atrás era muito difícil, mesmo com softwares pra gravar em casa, ainda era muito difícil. Hoje a gente vê um nível de estrutura muito melhor pra quem tá começando, e isso colabora muito pra força da cena.

Hoje tu já vês as bandas com lógica de trabalho mais profissional, mais complexo, pensando em lançar clipe. Um tempo atrás a Blocked Bones, Blind for Giant e Sokera lançaram 3 clipes com uma história só, o que era muito difícil acontecer uma década atrás. Eu percebo esse profissionalismo e aposto nessa cena nova, torço pra que eles continuem no processo, porque, como disseste, muita banda surge e muita banda acaba, não é todo mundo que é como o Jayme Katarro (do Delinquentes) que consegue aguentar 30 anos de hardcore “na lata”. Mas eu torço muito pra essa galera que abraça o “Do It Yourself”, que grava os próprios discos, filmam os próprios clipes, marcam os próprios shows.

Dez anos atrás a gente esperava o Roberto do Café com Arte chamar, tipo, “pô, vocês tão afim de tocar?”. Hoje não, pessoal vai atrás, procura data, faz o evento no Facebook, faz o flyer… Isso sempre existiu, mas hoje é mais latente. As bandas estão mais “astutas”, elas estão mais ágeis nesse processo. Dificilmente hoje tu vais assistir uma banda e ela não tem nada gravado, nem que seja uma demo no SoundCloud ou algo no Spotify, seja lá como gravado! Se eu assisto um show do Cinza e curto, posso procurar no Spotify e achar. E é uma banda que não tem nem um ano de idade!

Dez anos atrás isso não acontecia; tu tinhas que esperar 2 anos pra banda lançar um EP, mais um outro tempão pra lançar um clipe… A Internet colabora com isso, essa esperteza das bandas, e o zeitgeist do tempo, as bandas precisam ser mais profissionais. Se você lança uma banda que não tem nada gravado, a gente vai ficar “pô, não tem nada ainda…”, então eu percebo isso e acho positivo, esse pensamento mais profissional dos artistas.

Foto: Anderson Silva

Tu já tocaste em quase todos os lugares possíveis por aqui (casas de show e festivais) e eu imagino que já tenhas presenciado, principalmente no Mongoloid, que dá mais espaço pro pessoal do Hardcore e Metal daqui de Belém. O que tu achas dessa cena underground?

Cara, eu adoro. Uma das minhas bandas favoritas da cidade é o Delinquentes, que deve ser a preferida de muita gente. Mas eu não acho que o objetivo do Hardcore e grind, esses lances mais extremos, serem algo tão mainstream, tão popular. Mas eu acho muito bom. Eu gosto muito do Manduca na Roça, do Sokera (que são mais conhecidos), do Warpath (um trio de metal). Eu acho o Baixo Calão uma das melhores bandas de grind do mundo! O show deles é muito foda.

Dentro do cenário mais extremo, ou do pop, ou da Nova Música Paraense, enfim, tem muita gente competente em todos setores. No rap, a gente tem o Pelé do Manifesto. Porra, ele é muito foda! Ele pode ser novo, mas é muito bom, se destaca bastante. Enfim, nossa cena é muito boa. Dependendo do que tu gostas, Belém sempre vai ter coisa legal pra ouvir.

Tu achas que o cenário político complicado que acontece no Brasil, e também aqui no Pará, vai criar algum tipo de empecilho pra cena?

Cara, sendo prático, pode acontecer uma redução nos projetos, nos editais de incentivo público que nós temos, nos espaços. Sofremos um golpe político, mas eu acredito, em contrapartida, que sempre que acontecem esses cenários sócio políticos adversos surge uma resposta artística muito foda. Por exemplo, nos anos 1960, com a guerra do Vietnã e a Guerra Fria, houve o movimento hippie, Woodstock… Ou os EUA durante os anos 1980, com o governo Reagan, e surgimento do movimento Hardcore, com Black Flag e Fugazi. Essas bandas surgiram pra responder às situações que viviam.

E falando sobre rock, que é onde me insiro, eu acredito na função social de ser um contraponto. A gente não pode ficar pra sempre complacente com esse tipo de postura. Cada banda, cada artista vai ter uma forma de responder a isso, seja um “Fora Temer” num show ou um disco focado nisso.

Essa ferida que sofremos na democracia vai trazer respostas duras. Lógico que vamos sofrer com repressão policial, com atitudes políticas como PECs etc, mas a gente vai ter respostas artisticas muito boas, e pode ser cedo pra dizer, mas a gente vai começar a perceber que os ganhos foram maiores que os danos.

Eu acredito que a música, a arte como um todo, é uma forma de resistência. Seja na sua família, que seus pais não querem que você toque guitarra, ou na sua cidade, que não permite o acesso democrático à cultura e tal.

Mas eu tenho uma visão otimista, acredito que os artistas vão responder. Daqui a uns 15 anos a gente vai olhar pra trás e ver que as respostas foram maiores que os danos sofridos. É isso, a gente tem que continuar lutando, não pode parar de produzir porque não vamos receber mais incentivos. Vai ficar mais difícil, mas vai fazer mais sentido continuar produzindo arte, e você vai se esforçar mais para isso.

Tu não achas que, pra um artista iniciante, é muito difícil entrar na cena musical? Porque, pra quem começa, às vezes parece que as coisas saem do nada pra nada.

Cara, o Emicida tem um verso que eu acho muito massa. Ele fez em forma de música, não em texto de Facebook…Enfim, tem um espaço em São Paulo que se chama “Espaço Rap” , que era bem hypado, e no meio da música ele fala “Se a galera não me chamar pra tocar no Espaço Rap, eu resolvi trabalhar e arrumei espaço pro meu rap”.

Por exemplo, o Camilo, com o Turbo, já tem mais de 10 anos, e o último disco deles se chama “Eu sou Spartacus”. Essa frase é daquele filme “The Wonders”, sobre uma banda e tal. O que acontece nesse filme: a banda acaba porque um vai namorar uma garota e esquece da banda, o outro se acha superastro e sai fora, o baixista era contratado, e acaba ficando só o batera. A banda acaba no estúdio, ficando só o baterista tocando sozinho lá. Enquanto ele tá lá, tocando, concentrado, entra um jazzista que ele era fã e o observa, e depois pergunta qual era o nome do tema, e ele responde “Eu sou Spartacus”, que é outro filme, que o cara vai sozinho pra guerra, sem ninguém; apenas ele.

Então, é muito disso. Eu sou Spartacus é uma lição de persistência pra cena. Mesmo que ninguém queria tocar contigo, que ninguém queira viajar contigo, que todos amigos desistam e virem concurseiros ou qualquer outra coisa pra vida, você vai continuar. Eu sou Spartacus é um dos meus discos recentes favoritos. Então é isso, se agora tá parecendo muito difícil, a persistência vai te provar algo.

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