É desonesto igualar o fascismo ao comunismo

Edson Amaro De Souza
Revista Subjetiva
Published in
6 min readJun 14, 2020

O “Fantástico” do dia 7 de junho de 2020 mostrou que tem crescido no Google a procura por “fascismo” e “antifascismo”. Quando se diz que os regimes fascistas censuraram a imprensa e concentraram o poder nas mãos de líderes totalitários, aparece gente desonesta dizendo que o fascismo e o comunismo são iguais. Basta ler o “Manifesto do Partido Comunista”, de Marx e Engels, que está disponível em PDF em vários sites por aí para ver que isso não é verdade.

Não vou negar que países dirigidos por partidos comunistas censuraram a imprensa — o que há para se discutir é se a censura à imprensa está no cerne do pensamento comunista ou não: Marx realmente desejou regimes políticos que censurassem a imprensa? Se culparmos Marx pelos abusos feitos em nome do comunismo será justo também culparmos Jesus pelos abusos feitos em nome do cristianismo.

Mas é o cerne das ideologias comunista e fascista que eu quero abordar. Sim, vou falar de ideologias, porque tudo é ideologia. Não há quem esteja livre de ideologia. Quem diz que Deus existe faz uma declaração ideológica. Quem diz que Deus não existe também faz uma declaração ideológica. É a ideologia que faz com que Ana Maria Braga considere correto que seres humanos matem frangos, bois, porcos e peixes para assá-los e comê-los. Também é ideológica a atitude de Bela Gil em não comer cadáveres de animais. Ana Maria Braga e Bela Gil colocam ideologia nas refeições que preparam diante das câmeras. Então, Jair Bolsonaro, aquele sujeito que passou 28 anos como deputado e disse no programa “Roda Viva”, quando candidato a presidente, que não entende de Economia (teve 28 anos para aprender, com um salário gordo, e sendo um dos deputados mais ausentes — ou seja, não tinha nem mesmo a desculpa de que trabalhava, tempo não faltou para aprender), mente quando diz que faz isso ou aquilo “sem viés ideológico” — “sem viés ideológico” é um mantra que ele repete para encantar quem, como ele, passa longe de bibliotecas.

O cerne da ideologia comunista está nas primeiras linhas do “Manifesto do Partido Comunista”: “Até hoje, a história de todas as sociedades é a história da luta de classes” — citei agora de um PDF que baixei, por absoluta preguiça de me levantar para buscar meu exemplar na estante. Se não leu ainda, baixe um PDF e leia. Os comunistas declaram então que há uma luta de classes: o lugar de cada pessoa na economia define a sua classe social. O lugar do presidente do Banco do Brasil não é o mesmo lugar do gerente que obteve esse trampo num disputado concurso e, junto com seu salário, recebe algumas ações para sentir-se dono do banco, mas não tem poder de decisão sobre qual será a taxa de juros que Seu Manuel vai pagar caso pegue um empréstimo para instalar uma nova padaria no bairro. O lugar do juiz não é o mesmo lugar da faxineira do Fórum. O lugar do CEO da Peugeot lá na França não é o mesmo lugar do operário que controla o robô que instala o vidro dianteiro do automóvel que foi construído com o ferro da mina de Brumadinho e será exportado para o Brasil. Assim sendo, essas pessoas têm lugares e funções diferentes na economia e seus interesses são diversos. O empresário aumenta seus lucros não apenas aumentando as vendas de seus produtos mas também pagando aos empregados menos do que poderia pagar. Daí que o comunismo diz que quem trabalha deveria ter o poder de decisão na sociedade, mas esse poder está nas mãos de quem lucra, de quem é dono dos meios de produção (terras, fábricas, bancos etc.). O comunismo quer uma revolução que coloque todos esses meios de produção nas mãos de quem trabalha e os trabalhadores decidirão coletivamente o que será feito e como a riqueza produzida será usada em favor de todos. Essa é a teoria jamais posta em prática. O que foi posto em prática foram experiências socialistas, pois o partido comunista diz que, antes de se alcançar o comunismo (quando tudo estará diretamente nas mãos dos trabalhadores, sem que haja Estado mediando as relações) será necessário instalar o Socialismo, quando o Estado administrará a Economia em favor da classe trabalhadora. Foi a implantação do Socialismo que se tentou em vários países pelo comunismo. Agora cada um julgue essas tentativas. É por estar centrada na classe trabalhadora que a ideologia comunista tem como símbolo a foice e o martelo, que representam os trabalhadores do campo e da cidade, os camponeses e operários.

O fascismo tem por símbolo um feixe, conjunto de galhos ou gravetos, unidos e amarrados, formando um cabo e no alto a lâmina de um machado. Um só graveto é fácil de quebrar, mas se você unir 10, 100, 1000 gravetos, você não conseguirá quebrá-los. A mensagem desse simbolismo é clara: a união faz a força. “Feixe” em Italiano é “fascio”, daí o nome “fascismo”. Daí a ideia que todos devem estar unidos no mesmo feixe: o especulador da Bolsa de Valores e a faxineira, o dono da empresa de ônibus e o motorista, o latifundiário e o camponês que recolhe as frutas para exportação. Em nome dessa união, nada deve ser contestado. A bandeira nacional serve para encobrir as diferenças.

Então por que eu sou antifascista? Porque, quando eu ando pelas ruas da cidade, vejo um monte de gente dormindo nas calçadas, com fome, com frio, dependendo que alguém lhes dê um prato de comida e um cobertor. E quando pego um ônibus entre Niterói e Cabo Frio, vejo extensas propriedades rurais em que só cresce grama — no máximo, há 20 ou 30 vacas pastando. Vejo um monte de gente se matando para pagar o aluguel, e para pagar o aluguel, deixam de ir ao cinema, ao teatro, à praia, aos museus, às livrarias, sacrificam seu lazer e seu prazer. Então os interesses da faxineira, que deixa de ter prazeres para pagar o aluguel, e dos desabrigados, que dependem da caridade das freiras, não podem ser os mesmos interesses dos latifundiários que pouco ou nada produzem naquelas grandes extensões de terra: o meu interesse é que aquelas terras sejam desapropriadas para que ali se construam casas para os pobres e para que esses mesmos pobres possam plantar ali alimentos que chegarão mais baratos às cidades próximas. Aí os fascistas que querem encobrir essas diferenças com a bandeira nacional me chamarão de “vagabundo”, “comunista”, “esquerdopata” e me desqualificarão de todas as maneiras para que ninguém ouça as minhas palavras: para que a faxineira que se mata para pagar o aluguel, a freira que distribui cobertores e o desabrigado que recebe o cobertor não pensem que um outro mundo é possível: que a única coisa ética a fazer, a única maneira de se respeitar a dignidade humana é desapropriar aqueles grandes latifúndios para que todos tenham casa, trabalho e comida. O latifundiário não morrerá de fome se deixar de ser dono de uma extensão de terra muito maior do que os seus olhos conseguem enxergar, mas tem muita gente morrendo de fome hoje porque ele se diz dono de toda essa terra e o Estado lhe garante essa propriedade. Aliás, o Estado não deveria garantir isso, porque a Constituição Federal de 1988, no artigo 5, inciso XXIII, diz que a propriedade privada, assegurada no inciso anterior, precisa cumprir uma função social, e no inciso XXIV diz como se deve operar a desapropriação para fins sociais. Isso fica ainda mais claro no “Estatuto da Terra”, sancionado para promover a reforma agrária — como o Brasil não é para principiantes, esse Estatuto foi uma das primeiras leis feitas pela ditadura em 1964, e o MST exige que seja cumprida —, e o “Estatuto da Cidade”, sancionado em 2000 para promover a reforma urbana.

Vamos dar outro exemplo: o senhor David Ayrolla, biólogo, que desenvolve no YouTube o canal Papo de Primata, divulgando a ciência, é brasileiro nato. Silas Malafaia, Olavo de Carvalho e Jair Bolsonaro também o são. Se eu tivesse dinheiro suficiente para dar a cada estudante do Brasil um exemplar de “A Origem das Espécies”, de Darwin, seria aplaudido pelo David Ayrolla, que faria um vídeo em minha homenagem dizendo que eu estaria estimulando o conhecimento científico e o pensamento crítico da juventude. Os outros três acusar-me-iam de querer doutrinar a garotada e destruir a fé cristã. Malafaia, Olavo e Bolsonaro se mijam de medo de qualquer questionamento, têm mais medo do pensamento crítico que da covid19. — Ah, sobre a fé cristã: o papa Francisco já disse que Big Bang e evolução são reais. Darwin só ameaça o fundamentalismo, não a fé cristã. Então fica claro que, embora os quatro cidadãos citados sejam brasileiros, não podem ter os mesmos interesses: o compromisso de David Ayrolla é com o conhecimento. O dos outros três é com a obediência cega e a desinformação.

Com esses exemplos, espero ter esclarecido o que é fascismo.

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