Ó o Nó na Orelha

Rafael Moreno
Revista Subjetiva
Published in
4 min readJun 12, 2020
Rapper Criolo. Foto: Gil Inoue

A minha primeira lembrança sobre o Criolo foi aqui na zona leste de São Paulo. Não, não trombei com ele e nem colei num show. Esse primeiro contato foi de uma maneira que hoje, a grande maioria de nós temos: pela internet.

Também não me pergunte como, ou porquê, mas sei que rolou lá no youtube um vídeo de um mano numa padaria rimando uma versão pessoal de Cálice, do Chico Buarque. Sente só o poder dessas rimas:

Canal FCOCrioloMC — aproveita que no final do vídeo tem surpresa

Só pra terem uma ideia, encontrei dois vídeos dessa mesma apresentação, que somam, hoje, mais de 2 milhões de visualizações. Caramba! Detalhe, a hora em que a rima tá vindo e ele olha para o balconista pedindo uma dose, mano, aquilo é sensacional.

Talvez tive esse contato meio tardio, eu sei. Mas a época, não tinha muito acesso as coisas. Curtia o que a tevê mostrava pra mim e, mesmo nas músicas black, tirando um pouco de Marcelo D2, não lembro de ver/ouvir rap na tevê aberta. Claro, veio a internet, aquela comunidade Discografias no Orkut e a minha percepção de que o rap era a minha música. Mas esse é outro rolê.

Depois tive uma segunda pancada! Pow! Bem no meio! O clipe mais bonito que tinha visto na minha vida até aquele momento. Parecia um filme, mané! A letra, então, mano do céu. É o rolê de toda molecada que não vive em condomínio, manja? Tinha coisa ali e eu sabia que poderia vir mais.

Canal Oficial do Rapper Criolo

Então esse mano era Criolo Doido e virou Criolo. Tava na cena há vinte anos, já tinha lançado um álbum lá em 2006, chamado Ainda há tempo. A capa eram dois semáforos amarelos. Do tipo, presta atenção, mano. E, quando seu freestyle com Cálice, chamou a atenção, sua ideia de dar uma pausa foi prorrogada. Ufa, ainda bem. Porque daí ele decidiu que precisava mostrar mais.

E mostrou. Nó na Orelha é o segundo álbum do rapper, lançado em 2011. Tamo em 2020, nove anos é um intervalo de tempo muito curto pra tanta coisa que aconteceu até então, não é mesmo?

Direitos de Imagem: Oloko Records, Criolo

O rap começava a tomar o mainstream. Criolo colou no Altas Horas, jaqueta do Corinthians, do mano que sai do Grajaú para fazer seu trampo. O rap tava na tevê. E assim, o título do álbum fez sentido pra mim.

Suas músicas eram pra dar um nó na orelha de quem nunca consumiu o rap. É pra confundir, causar estranheza, levar o público para o lugar comum que são, olha só que ironia, as ruas. De tanto trabalhador e trabalhadora que sentem o rap diariamente. Até porque, o mainstream do rap sempre foi as ruas. E isso faz dele imortal, saca?

Perdi as contas de quantas vezes escutava Linha de Frente e Ainda há tempo quando voltava da faculdade.

Tá legal, tá legal, e qual é a desse álbum?

Nó na Orelha é o rolê do Criolo na cidade grande. Sua percepção como artista independente, do tamanho que é São Paulo e por vezes como se sente sozinho num lugar onde o consumo dita a vez. Você pode lembrar muito bem disso com Não Existe Amor em SP, mas ele traz um pouco mais.

Veja, ele é daqui de São Paulo, pô! Ele tá ligado nisso e, ao mesmo tempo que tem receio desse estado gigantesco e como ele se comporta, também guarda com carinho seu berço lá no Grajaú. Já ouviu falar do Pagode da 27?

A rua é sua formação, casa. O lugar de acesso onde ele se faz acessível. Os saraus tiveram que invadir os botecos/porque biblioteca não é lugar de poesia/biblioteca tinha que ter silêncio/e uma gente que se acha assim muito sabida.

Talvez o nó na orelha seja pra quem negou a arte e o artista. Manja, aqueles mesmos que dizem que funk não é música e que rap é coisa de bandido? Boa parte ocupa a biblioteca e nem poesia faz.

Agora foi tela azul em quem viu o rap tomar o a frente, saca? Esse é o nó na orelha que o Criolo dá. Vem pra mostrar a São Paulo que a maioria população vive e a minoria finge não existir. Veja pelos meu olhos como vocês enxergam diferente.

São Paulo é míope.

Precisamos urgentemente de um grau a mais em nossa visão. Ou apenas entendermos outras expectativas.

Criolo faz os dois. Fornece a visão para o que deve ser visto e canta o que precisa ser ouvido, dando e desfazendo os nós.

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