1500: O ano que nunca terminou (falando sobre o genocídio dos povos indígenas).
No dia 19 de setembro de 2014, a Comissão de Anistia concedeu à 14 indígenas Aikewara (popularmente conhecidos como Suruí do Pará) a condição de anistiados político, oferecendo-lhes reparação pelas violações de seus direitos durante ditadura militar; mais especificamente, durante a campanha de repressão à Guerrilha do Araguaia. Foram reconhecidos os crimes de exceção praticados pelos militares e agentes do Estado contra os membros deste povo que, na época, pouco ou nada falavam de português e contavam com pouco mais de 60 pessoas. O fato detalhado: durante meses (entre 1972 e 1973) as imediações da aldeia foram utilizadas como ponto de apoio do esforço militar, homens aikewara foram obrigados a servir de guias para as tropas e a realizar serviços forçados — como carregar munição, alimentos e corpos –, mulheres e crianças foram mantidas em cárcere privado dentro de suas malocas, impedidos de sair para buscar comida, de se banhar nos rios, dependiam exclusivamente das rações oferecidas pelo exército.
“A partir de hoje a história do Brasil tem que ser contada diferente”, declarou, na ocasião, o Presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão. “Marco histórico”, de fato, naquele momento, nutria-se a esperança de que sentença não coroasse apenas — e esse apenas, na atual conjuntura, já era bastante significativo, sabemos — o reconhecimento oficial dos crimes cometidos por agentes do Estado contra indígenas, mas do reconhecimento de que — nas palavras do próprio Presidente — “[o] conjunto de uma comunidade indígena também foi vítima da ditadura militar”.
Contudo, como o tempo comprovou, infelizmente, aquilo que se imaginava ser o primeiro pedido de desculpas formal do Estado brasileiro a um povo indígena pelos crimes cometidos durante a colonização da Amazônia, não passou de mero um ato simbólico. O gesto reparativo, já de princípio, esbarrava nos limites formais da própria Comissão — estabelecidos pelas leis 9.140, de 4 de dezembro de 1995, e 10.559, de 13 de novembro de 2002 — que, como se sabe, opera por meio de compensações financeiras que tomam por base as atividades laborais dos afetados. Destarte, ainda que o Estado, por meio da comissão, tenha reconhecido de maneira inédita a pertinência da questão, que tenha reconhecido que suas ações durante a ditadura afetaram não apenas os 14 anistiados, mas o “conjunto de uma comunidade”, uma comunidade indígena, ele se mostra incapaz de repará-lo.
Ignorava-se, assim, a principal reivindicação desta população, aquela que os próprios julgam ser o única forma de diminuir os danos causados pelo contato com o Aparelho Repressor: a demarcação de sua terra que lhe fora tomadas pelo Estado e entregues a fazendeiros e regionais como parte deliberada do esforço de contenção a guerrilha. Com efeito, pois só a terra, afirmam os próprios Aikewara, seria capaz de lhes garantir algo que lhes foi tomado no passado, algo que o dinheiro não pode comprar, a especificidade de sua existência no seio da humanidade. Literalmente condenados a viver ao lado dos não-indígenas, os Aikewara não apenas estiveram sujeitos a toda sorte de intempéries relacionados ao contato com a sociedade brasileira (doenças, violência, vícios) — não obstante, uma BR corta a terra demarcada, engolindo quase 20% de sua extensão –, como viram desaparecer partes importantes de sua vida cultural. Sem acesso ao rio, os Aikewara abandonaram a fabricação de utensílios de barro e argila, uma atividade central no universo feminino desta população; deixaram ainda de fabricar canoas e de pescar:
“Nós éramos canoeiros e hoje só conhecemos canoa da televisão, nós eramos da região do Rio Araguaia e agora o rio mais próximo fica uns 70 quilômetros”. Iwynuhu Suruí
Enfim, no lugar da tão almejada reparação coletiva, uma reparação por aquilo que eles sofreram — e ainda sofrem — enquanto povo, o Estado só foi lhes foi capaz de oferecer um alento para o sofrimento individual. Nas palavras do próprio Iwynuhu, “sofremos como índios, mas fomos julgados como brancos”.
Um caso bom para se pensar
Esta sentença — se me permitem utilização de um jargão clássico da antropologia — é um daqueles casos “bons para se pensar”, e não apenas por expor — como demonstrei em outras oportunidades — os limites da justiça de transição — ou as bases eurocentricas dos direitos humanos –, mas por expor algo ainda mais profundo, as reverberações, melhor, a persistência de uma certa “demência totalitária”. Palavra forte, tenho plena consciência — e ainda vou me utilizar de uma pior –, mas, creio, trata-se de uma noção essencial para compreender o que se passa.
Enfim, alguns dos leitores já sabem o que esperar, já devem ter detectado um ar de família “arendtiano”. De fato me inspiro aqui na forma como esta autora descreve os regimes totalitários, mais especificamente, na maneira como estes se tornam capazes de controlar a experiência dos indivíduos, ao ponto de dotarem os relatos que dão conta de sua perversidade de uma certa “atmosfera de irrealidade”. Como, por exemplo, até hoje são encarados — lamentavelmente por parte considerável e crescente da população brasileira — os relatos de torturas e desaparecimentos forçados ocorridos durante a Ditadura Militar; ou sobre aquilo que ocorre durante as operações policias em favelas cariocas.
O problema, diria, é que no que diz respeito as violações dos povos indígenas, a “demência totalitária”, essa “atmosfera de irrealidade” vai além. Basta oferecer a uma pessoa, uma pessoa minimamente razoável, digo — dessas que não votam no Bolsonaro, por exemplo, esses são casos perdidos — os números iniciais da contagem das vítimas indígenas (apenas mortos e desaparecidos) durante a ditadura militar. E não importa se você lhe oferece oito mil? três mil? dois mil? Pouco importa o número inicial, você verá a pessoa reagindo com certa incredulidade — e não é de se estranhar, levando-se em consideração que o número de vítimas reconhecidas em meios urbanos seja de “apenas” 434 indivíduos.
Incredulidade que que se observa, inclusive, entre especialistas: juristas, historiadores, e até mesmo antropólogos.
Incredulidade motivada pelo desespero e não pela má vontade: “não é possível”, dizem.
Enfim, o que nos importa, por ora, é estabelecer uma relação disto, desse movimento de incredulidade, essa demência totalitária, com o caso previamente citado de meus amigos Aikewara. Bem, o elemento fino do diagnostico de Arendt é o de que a descrença se dá tanto por parte daqueles que a escutam como da parte do emissor, que permanece sempre como uma vítima de dúvidas quanto à sua própria veracidade, como se ele pudesse ter confundido um pesadelo com realidade, buscando, assim, mecanismos, dispositivos capazes de amenizar o horror da descoberta de “tudo é possível”. O que quero dizer com isto, que mesmo eu — afinal, fui co-autor do estudo que serviu de base para processo — durante muito tempo fui incapaz de perceber — ou crer — na real dimensão das violações dos direitos de meus amigos. Não compreendi, por exemplo, que se tratava de uma tentativa de genocídio, e não de “simplesmente” maus tratos individuais.
Eu avisei de que a “demência totalitária” era apenas o começo.
Sobre o genocídio
Enfim, não se trata de uma aproximação leviana destes conceitos — não se trata de um post de facebook onde se ganha likes por meio da polêmica. Quando digo que se trata de um caso de genocídio/etnocídio, remeto-me aqui a Lei no .2.889, de 01 de outubro de 1956 — ainda em vigência -, que define o crime de genocídio da seguinte maneira: Quem, com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal: a) Matar membros do grupo; b) Causar lesão leve à integridade racial ou física de membros do grupo; c) Submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial; d) Adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; e) Efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo. Remeto-me, portanto, a lei e ao entendimento que Juristas como Canedo e Fragoso fazem desta — e isso para nos limitarmos ao aos nossos conterrâneos, pois um exame nas sentenças proferidas em tribunais internacionais nos forneceria um subsídio ainda maior para o argumento.
Argumento que começa pela compreensão de que a repressão política e social aos povos indígenas durante a ditadura militar não apenas foi ampla e letal, mas de que não se tratou, como era erroneamente difundido, de um mero efeito colateral da repressão política aos movimentos de esquerda e/ou como uma consequência natural, inevitável, do desenvolvimento nacional. Sabe-se, hoje, por meio de documentos e relatos (tanto dos atingidos quanto de ex-agentes do estado) que esta operação repressiva multifacetada foi deliberadamente orquestrada para desarticular qualquer resistência que estes povos pudessem oferecer ao projeto político do Estado.
Com efeito, pois da perspectiva do estado os povos indígenas eram opositores políticos per se, sua mera existência, ou seu “conjunto comunitário” — para nos remetermos a sentença dos Aikewara –, representava uma resistência ao projeto nacional. E por esta razão as bases de sua mobilização coletiva foram atacadas, por este motivo alguns foram destes presos, torturados, mortos, vítimas de desaparecimento forçado e — e aqui voltamos a lei — suas populações foram expostas “ a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial”. Dito de outra maneira: tudo se passa como se as violações perpetradas contra os indígenas fossem indissociáveis de sua “condição étnica”. E isso em todos os sentidos.
Permitam-me recorrer a outros exemplos para que meu argumento fique mais claro.
Em 1968, o Governo Militar determinou a invasão do território Waimiri-Atroari (também conhecidos como Kiña), para garantir a construção da rodovia BR-174, Manaus — Boa-Vista. Os Waimiri-Atroari foram os massacrados — bombardeados por aviões da FAB — por resistirem aos avanços do Estado sobre suas terras originárias — que, segundo a constituição da época, já lhes seria de direito –, massacrados por resistir à perspectiva assimilacionista do governo de então que os compreendia como uma categoria social transitória. Com outras palavras, foram massacrados por não se submeterem a chamada “pacificação”. Não obstante, indícios coletados pelo Comitê Estadual de Direito à Verdade, à Memória e à Justiça do Amazonas, expostos no relatório relatório “O Genocídio do Povo Waimiri-Atroari”, apontam que a condição étnica diferenciada dos WaimiriAtroari não apenas motivou os ataques, como os condicionou. Tudo indica que o exército brasileiro se utilizou de um parco conhecimento sobre a vida dos Waimiri-Atroari para maximizar a eficiência de sua ofensiva. Que atacavam quando estes estavam reunidos em suas aldeias para a realização de rituais.
Talvez este seja um dos casos mais emblemáticos de genocídio de um povo indígena na história recente do Brasil, mas nem de longe é o único. Pois os casos se multiplicam se levarmos em conta que na maioria das vezes genocídio não corresponde ao massacre direto de uma população. Nos termos da lei, genocídio corresponderia também a “submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial”. Enquadra-se, aqui os casos em que agentes do governo, sob ordens diretas de seus superiores, forçaram deliberadamente o contato com grupos de frágil condição epidemiológica, muitas vezes apenas para garantir o sucesso de empreendimentos econômicos (públicos e privados). Como ocorreu com diversos povos indígenas durante a abertura da Transamazônica, em meados dos anos 1970. Na ocasião, uma das etnias afetadas, os Araweté do Pará, chegou a perder 36% de sua população vitimada por uma gripe.
Números, diga-se de passagem, costumam aparecer em nossas monografias de maneira natural, quase como índices pluviométricos — e sabemos, hoje, que nem estes são tão “naturais” quanto imaginávamos. Para se ter uma ideia da “naturalização do processo”, na época, existiam manuais que estabeleciam taxas aceitáveis, normais, de mortes durante o contato.
Aqui nos depararmos com um aspecto fundamental do entendimento que determinados juristas — nacionais e estrangeiros — fazem do genocídio. Que o Estado pode ser responsabilizado mesmo pelos casos onde o ato não foi perpetrado pela ação direta de seus agentes. E para tanto sequer precisaríamos recorrer ao entendimento do direito internacional de que neste tipo de crime deve ser utilizada a “teoria do domínio da organização”.
Bastaria uma rápida inspeção nos casos de violações para comprovar que, ora ele ocorrem por omissão do Estado, ora, por meio da ação de um conluio de forças estatais e privadas.7 Em diversas ocasiões o Estado não apenas se omitiu na garantia dos direitos destas populações, como incitou diretamente a ocupação de suas terras — e, assim, submetendo seus ocupantes a “condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial”.
Poderíamos retornar ao caso Aikewara, que tivera suas terras ocupadas e foram expostos a toda sorte de intempérie ocasionada pelo contanto intenso com a sociedade envolvente. Contudo, creio que seja melhor citarmos outros — e tais casos são inúmeros. Em 1968, novamente, o governo federal adotou uma política de estímulo de projetos agropecuários em uma região sabidamente ocupada por indígenas Nambikwara, o Vale do Guaporé em Rondônia. A Funai, então sob a direção do general Bandeira de Melo, era parte fundamental desta política — melhor, desse esquema –, emitindo documentação oficial que negava a presença de índios na região; emitindo as “certidões negativas” necessárias para que os agropecuaristas não apenas pudessem ocupar a região, como também acessar aos recursos federais da Sudam. Como resultado direto dessa política de incentivo, os Nambikwara foram acometidos epidemias de gripe, malária; uma epidemia de sarampo chegou a dizimar toda a população com menos de 15 anos. Não obstante, a pequena parcela de sobreviventes, além de serem continuamente atacados pelos fazendeiros, tinham suas roças bombardeadas com o desfolhante Tordon 155-BR, popularmente conhecido como Agente Laranja.
Creio que meu argumento esteja claro.
O que nos importa, ao menos por ora, é a reflexão de que a nossa tarefa — nossa, digo, daqueles que se envergonham destes acontecimentos — é o enfrentamento dessa “demência totalitária” que nos aflige em todos os frontes. E, para tanto, dependemos dessa operação pragmática que é conceder a esses eventos um nome. Afinal, nomear, como oportunamente nos lembra Stengers sobre a importância do ato, atribui aquilo que se nomeia o poder de nos fazer sentir e pensar o que o nome suscita. O nome nos afeta, nos torna afetáveis — e só assim podemos resistir ao “colapso do mundo” promovido pelo totalitarismo, o descolamento do homem do mundo sociopolítico. Só ele nos permite ver o horror destes regimes, só ele nos permite experienciar e enunciar aquilo que já fora chamado de o mal radical.
A palavra, o nome em questão, é genocídio, e não “contato”, “fricção interétnica”, “taxas aceitáveis de perdas populacionais”, “epidemia”, e — como bem nos nos mostrou a primorosa tese de Barbara Cassidy, uma indígena canadense — tampouco “taxas de suicídio”. Tratam-se, todas elas de expressões, reverberações do genocídio, de múltiplos genocídios: Uma estrutura que, sabemos, não começou com a ditadura e, definitivamente, não acabou com ela, mas que nela ganhou uma determinada forma, uma forma que ganha força a cada dia, e não apenas pela mão daqueles que “puxam o gatilho”, mas também por meio daqueles que não creem na sua dimensão.
De fato, se existe um ano que nunca acabou, esse ano é 1500.