“1917” é uma aula de cinema no formato de um épico de guerra

Andressa Faria de Almeida
Revista Subjetiva
Published in
5 min readJan 13, 2020

As guerras costumam ser lembradas pelos amantes da história por suas batalhas, métodos, vencedores e pelas repercussões que trouxeram para a humanidade, mas para os combatentes que nelas estiveram a vivência nesse dia a dia extremamente hostil acaba tendo muito mais peso. Afinal, o tempo passado no front atacando o inimigo é infinitamente inferior ao da espera para atacar, e é nessa espera que esses homens precisaram encarar intempéries mil, como o racionamento de comida e água, a podridão dos campos que os cercam, as perigosas armadilhas deixadas por terceiros, os cadáveres de amigos lembrando-os de seus possíveis destinos e a imensa quantidade de pragas existentes, tão resilientes quanto eles próprios!

Sam Mendes foi certamente hábil em compreender nas conversas com o seu avô (um ex-mensageiro da Primeira Guerra Mundial) o que deveria ser óbvio para todos nós: a luta pela sobrevivência nesses confrontos está principalmente nos bastidores dos grandes eventos, não no que os livros nos contam. Com esse entendimento ele construiu uma das obras cinematográficas mais impactantes do gênero em questão, que se destaca das demais por se apresentar como um plano sequência simulado de mais de duas horas de duração, algo inédito nos filmes de guerra.

Sobre essa escolha de estilo narrativo uma certeza se sobrepõe: ela têm resultados artísticos, claro, mas também essencialmente práticos. Se não fosse gravado dessa forma “1917” certamente não seria tão imersivo quanto de fato é, nos transformando desde os primeiros segundos de projeção em fiéis escudeiros dos cabos Blake e Schofield, dois jovens soldados britânicos encarregados de levar uma ordem para além do território alemão, com o objetivo de evitar um ataque surpresa que mataria 1600 combatentes.

Blake (interpretado com enorme carisma e verdade por Dean-Charles Chapman) possui razões profundamente pessoais para aceitar a missão sem exitar, já que o seu irmão é tenente do batalhão que tende a ser massacrado caso a mensagem não chegue ao seu destino final. Além disso, trata-se de um garoto de bom coração, encantado com os louros que pode receber por seus esforços de guerra, e a sua visão mais romantizada da batalha é também o que o faz seguir em frente.

Schofield (vivido por um George MacCarty totalmente entregue ao seu complexo protagonista) é, por outro lado, bastante resistente à ideia de abraçar a nova obrigação que lhe foi dada completamente, não se iludindo jamais com os ganhos que o combate pode trazer. Sua única preocupação é em continuar vivo e quem sabe voltar inteiro para casa, o que ele claramente desconfia que pode não acontecer. Juntos eles se equilibram e vão conduzindo o enredo, que apesar de simples possui uma realização indubitavelmente dificílima.

Se é compreensível que o “plano sequência” (com um único corte escancarado e os demais muito bem escondidos) é necessário para nos envolver também é fácil de entender o tamanho do desafio de promovê-lo. O design de produção e a direção de arte aqui não poderiam jamais falhar, tendo a função de entregar um set contínuo (nunca sendo possível voltar para uma parte dele já vista), que ainda por cima contemplasse os olhares mais apurados em busca de qualquer ponto esquecido. Felizmente os erros esperados não acontecem, e somos na verdade surpreendidos por tanto apuro e cuidado em termos técnicos!

Uma encenação tão orgânica só se materializou graças à direção caprichosa de Sam Mendes, que se apoiou integralmente na genialidade de seu diretor de fotografia, Roger Deakins. Estamos falando aqui de um dos grandes veteranos da indústria, recentemente premiado com um Oscar por seu trabalho em “Blade Runner 2049”, que chega aqui ao seu ápice. Nada se iguala na sua carreira ao que ele consegue fazer em “1917”, e não é exagero afirmar que estamos falando de um dos trabalhos de cinematografia mais especiais da última década.

Não só pelas cenas que com o trabalho de Mendes e Deakins se tornaram incrivelmente naturais aos nossos olhos, nos mergulhando ainda mais na experiência aqui proposta, mas também pela beleza das suas escolhas mais artísticas. Em alguns momentos chega a ser constrangedor considerar um filme de guerra tão bonito, mas esse é um mérito que esses dois artistas conquistam com essa obra, utilizando suas enormes capacidades em prol de uma homenagem e alerta pacifista.

A trilha sonora de Thomas Newman é igualmente encantadora, nos trazendo contemplação nos raros instantes de calma que o longa entrega e potencializando a nossa tensão ao máximo, quando isso é obviamente necessário. Junto a um design e mixagem de som ímpares ela colabora para que nos entreguemos por completo ao que o filme traz, ainda que saibamos que a caminhada não vai ser simples ou agradável.

Se algumas coincidências do roteiro de Mendes com Krysty Wilson-Cairns soam um pouco exageradas elas definitivamente não comprometem em nada o resultado ofertado, e ainda trazem uma certa humanidade que em muitos momentos faltam em obras do gênero. É claro que o espectador mais atento vai apontá-las com facilidade, mas provavelmente não se sentirá incomodado observando o resultado que chega às telas e a sua força.

1917” é espetacular em um nível verdadeiramente inesperado, sendo muito mais do que um filme voltado apenas para quem se identifica com esse gênero. É impossível entrar no cinema para vivenciá-lo e sair sem sentir que se esteve na Primeira Guerra Mundial, ainda que por um breve período, e as reflexões que partem desse estado de espírito são sim urgentes, principalmente em mundo que insiste em ser tão beligerante apesar de todos os pesares. As sensações e emoções por ele trazidas são realmente únicas e merecedoras de toda nota (e também da melhor sala que você puder visitar)!

Nota: 10

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