2020, ato III

Julia Hor-Meyll
Revista Subjetiva
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2 min readFeb 7, 2022
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Sopra um vento quente e são dez da noite. Verão no Rio de Janeiro. Ao menos estou em casa. Ao menos posso estar em casa. Ao menos tenho uma casa. E do lado de fora, a ameaça do vírus, essa disruptiva variante na esteira das desgraças nos novos anos 20. O medo do contágio, da morte, da perda, da ausência, da falta. Não tenho por que reclamar. Tenho muito a agradecer. Sigamos fortes, sejamos lógicos, empáticos, responsáveis. Poucos de nós ainda reafirmam seu compromisso com o todo.

O final de semana é badalado, escuto do meu quarto. Conversas e risadas altas, cantoria, talvez algum vizinho esteja de aniversário. Acho que outro já alcoolizou os convidados do churrasco. A música chega na rua toda. Li mais dois livros, emendo mais um, sem previsão de compromisso com o mundo externo. As reuniões virtuais também já não fazem sentido, estamos todos esgotados no silêncio. A reviravolta é que agora espero o sábado e domingo se arrastarem para que eu tenha logo com o que me ocupar na segunda-feira.

Trabalho de casa, home office. Nesse caos, tenho essa sorte. Tenho casa e comida, mais essa sorte. Família, amigos, os livros, a música. Gatos e espaço. Quando, ainda assim, o desespero ameaça entrar com o pé na porta, fervo água e dou o dia por encerrado. Durmo o máximo que posso. Adoço o chá com Rivotril. Uma gota a mais do que ontem, para aplacar a ansiedade noturna. Preciso comprar outro frasco.

As farmacêuticas prosperam nessa crise — a crise que veio depois da crise, a crise que antecede a crise. Na farmácia da esquina, dois funcionários afastados por Covid. A fila no balcão não permite uma distância de dois metros, nem um metro e meio, ou mesmo meio metro, ou as pessoas só perderam a noção de espaço assim como perderam a fé. As vacinas, graças a Deus, graças à ciência, ainda nos dão uma chance de seguir lutando, como deve ser. Decido que as pessoas não perderam a fé, só perderam a noção mesmo, a noção do respeito, a noção da realidade. Toda vez que um negacionista abre a boca, perdemos todos um dia de vida.

Pelo menos a farmácia tem ar condicionado. Do lado de fora é verão no Rio de Janeiro. Atrás de mim, um cidadão com a máscara no queixo. Penso que a partir de agora só saio de casa com um bambolê na cintura, quem sabe assim eles se ligam, quem sabe assim obrigo um distanciamento mínimo.

O bafo do verão aciona sozinho as portas automáticas.

Mal acordei e já estou cansada. É janeiro outra vez, e ainda estamos em 2020.

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Julia Hor-Meyll
Revista Subjetiva

leitora, escritora, aspirante a roteirista, tradutora, uma amante das palavras. // reader, writer, aspiring screenplayer, translator, a lover of words.