A última carta da tua caixa de correio

João Vitor Castro
Revista Subjetiva
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4 min readApr 27, 2022

A melhor coisa da vida é o fim. Calma. Ficou estranho, né? O fim das coisas, não da vida. A vida é a única coisa da vida que poderia não ter fim. Se bem que o fim da vida é um dos sabores da vida alheia. Pense comigo: sem o fim, não haveria saudade, esse sentimento que todo mundo sente, mas só brasileiro define. Sim, porque be missing you é completamente diferente de ter saudade tua. Sem os pontos finais não tem texto publicável, não tem semirreta, não tem nem nostalgia.

Tudo uma hora chega ao fim. E poucas coisas na vida são mais bonitas que o fim, porque o sabor da falta é que produz lembranças em fluxo, que reúne gente pra lembrar de quem já foi, que te faz ligar pr’aquela pessoa que há tempos sumiu, mas que sempre volta com as mesmas notícias. E por falta não entenda o desejo de ter, mas a ausência e só. E a ausência muitas vezes não é má.

Mas chega de filosofia, pois não sou filósofo; sou apenas um narrador de uma crônica num livro. Não vamos começar do começo pra economizar clichês. Não importa. É uma história um tanto relativa, também. E teve fim, como todas as histórias, como esta também se encerrará com um ponto final na última linha — essa é minha única garantia.

Nem contarei a história em si. Não é uma história incomum. Embora ambos pensassem por todo o tempo que era uma história diferente de todas as outras, não era. Ou era também. Afinal, toda história de amor é diferente. A premissa e o argumento são sempre os mesmos, mas o roteiro não. Pra te falar a verdade, nem sei ainda o que é que vou contar.

O que importa da história é que eles se esbarraram — sim, eles, novamente, personagens sem nomes próprios. É que quando os personagens existem na vida real fica difícil nomear na ficção. E depois de se esbarrar, se amaram. Descontroladamente. Na calçada, no parque, no carro, no cinema, na cama, no banheiro, no chuveiro, na puta que pariu. O ritmo, o toque, o gosto, o cheiro. Sentiu? Claro que sim. É o mesmo da sua história, a que todo mundo tem. Ou as.

E depois de se amar sem limites, sem ternura, sem compostura, sem compaixão e sem pudor, aconteceu o que sempre acontece — e se ainda não te aconteceu, te prepare, porque vai. Chegou ao fim. É que uma hora tudo esgota. Amor, como gordura quente na panela, tem prazo de validade. E quem diz que não tem tá comendo fritura em gordura suja por pão-duragem. Aí quem acaba é o coração — o literal.

A questão é que eles tinham tudo pra dar certo e dar errado. E deram certo e deram errado, cada coisa no seu tempo. É que quando se parte da premissa de que as coisas podem ser infinitas, o fim é o erro. Mas fora o tempo e o espaço, tudo acaba. E, se tudo acaba, o fim nem sempre é erro. Então deu certo.

Ela era uma inglesa liberal, mas ele era um liberal inglês — embora não fosse inglês e muito menos liberal. Mas há uma diferença de conotação aí. Se não notou, tente notar. E ingleses liberais com liberais ingleses não costumam combinar, desde o século XVIII. Se um é escola de samba e o outro é teatro municipal, uma hora fica foda escolher o programa da noite. Nem tudo que é bom cai bem misturado. Fora da matemática, mais com mais pode dar bode.

E quando acabou ele escreveu, porque era só isso que ele sabia fazer da vida. Escrever, escrever e escrever. Da compulsão à exaustão. À mesma potência de compulsão e de exaustão que outrora amara, que inda amava. E uma hora as cartas deixaram de ser respondidas. E ela foi embora sem olhar a caixa do correio.

Tomou pra si as lições daquilo tudo, que ele nunca entendeu e se entendeu discordou. E foi-se embora. Não sem dizer adeus, isso não. Disse adeus. Caloroso. Sem compostura, mas com ternura e compaixão, mas sem paixão. E com pudor e com limite. Mas disse adeus. E embarcou rumo à sua ilha continental do outro lado do Atlântico. E ingleses liberais e liberais ingleses nunca mais se viram.

As cartas reduziram. Cessaram. As respostas não vieram. A cama gelada se acostumou a ter um corpo só sobre os lençóis. A asa de passarinho machucado voltou a crescer e bater e voar pra ver o céu lá de cima, o oceano, e quando viu nem olhava mais pro norte pra tentar achar a ilha perdida. A porta voltou a abrir, mas não mais pra inglesas liberais nem liberais inglesas. Ou sim, também, tanto faz. Na sua exposição cabia tudo e mais um pouco, de máquina de escrever a livro empoeirado. E o público é o que cabe e pede licença.

Nos caminhos e nos descaminhos da vida, se desencontraram. A história teve fim, como toda boa história. García Márquez jamais terminaria um livro sem um ponto final. Eles se perderam, e agora são parte fundamental do passado de cada um. O amor não morreu, mas a paixão, como toda dor, uma hora passa. E passou. E cicatriz não sente dor. Curou, já era. Fim de papo.

Esta é uma versão da história. Certamente existem outras. Mas este livro não é uma mesa redonda: é um púlpito. E ele não está aberto ao contraditório.

E ele puxou a caneta, pra despedida. Mas se quiserem tomar um café, num lado ou outro do Atlântico, até que pode ter negócio. Mas carta não. A caneta de um não serve mais pra escrever o nome do outro. E sua última carta foi de poucas frases, breve, como nada do que viveram juntos:

“Esta é a última carta da tua caixa de correio. O futuro não nos pertence, mas garanto: vou brigar para que tu sejas sempre parte fundamental do meu passado. Uma das melhores dele. Mas nunca mais do meu presente.

Não sem amor,

Eu mesmo”.

Para completar a experiência deste texto, escuta essa música:

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João Vitor Castro
Revista Subjetiva

Jornalista, editor-chefe da Revista Brado e autor de “Refluxo” (Pedregulho, 2023).