Roteiristas e a diversidade na criação de séries brasileiras da Netflix

Victor Hugo Liporage
Revista Subjetiva
Published in
6 min readJun 16, 2020
Ilustração de Ramon Pozzi

A empresa de streaming Netflix anunciou em 2019 que investiria agressivamente em produções audiovisuais brasileiras. Mas até que ponto essas produções incentivam a diversidade de narrativas, territórios e profissionais da área no país?

Foram analisadas dez séries de ficção brasileiras e originais da Netflix, lançadas entre novembro de 2016 e maio de 2020, desconsiderando séries de animação, reality show, documentário e filmes longa-metragem.

O propósito é perceber se existe diversidade de gênero e raça entre roteiristas desse recorte de produções brasileiras fomentadas pela Netflix, além da regionalidade desse incetivo, ou seja: os estados onde as produtoras se estabelecem.

As fontes de informação foram as fichas técnicas do IMDb e dados disponíveis nos sites das produtoras, apesar de nem todas oferecerem fichas técnicas completas.

Não serão considerados eventuais roteiristas colaboradores ou assistentes, pois nem todas as séries creditam essas informações.

Roteiristas e diversidade racial

Dados destacáveis:

  • Apesar de negros serem 56,10% da população brasileira, apenas sete dos 59 profissionais de roteiro creditados são negras e negros.
  • Em três das dez séries, a equipe de roteiro creditada é composta apenas por pessoas brancas (“O Mecanismo”, “Coisa Mais Linda” e “O Escolhido”).
  • Em quatro das dez séries não há negros entre os roteiristas creditados (“O Mecanismo”, “Coisa Mais Linda”, “O Escolhido” e “Ninguém tá olhando”). Obs.: em Spectros, há um profissional que não foi encontrado. Nenhum outro é negro.
  • Roteiristas brancos não são minoria em nenhuma das equipes de roteiro das dez séries.
  • Em apenas uma das dez séries há equidade racial na equipe de roteiro (“Onisciente”).
  • As séries produzidas pela Boutique Filmes são as com mais diversidade racial na equipe de roteiro (“3%” e “Onisciente”).
  • Em seis das dez séries há personagens negros entre os protagonistas, mas em nenhuma delas roteiristas negros são maioria na equipe de criação.
  • O número de asiáticos e negros é parelho, mas juntos, não passam de 25% do total dos roteiristas creditados nas dez séries.
  • Um dado positivo: apesar de asiáticos serem menos que 5% da população do Brasil, compõem 10,2% dos profissionais de roteiro creditados nas séries analisadas.
  • Em apenas uma das dez séries (“Sintonia”), uma pessoa não-branca (Konrad Dantas, o KondZilla) faz parte da equipe de criadores. Obs.: em Spectros, um dos criadores (Anderson Almeida) não teve dados encontrados em pesquisa na internet.

Pode-se perceber que os números seguem o padrão da indústria cinematográfica brasileira, com leve aceno de melhora. Mas muito leve, levando em consideração que os números da pesquisa divulgada em 2016 pela ANCINE eram de uma disparidade gritante (97,2% dos longas foram dirigidos por brancos).

Roteiristas e diversidade de gênero

Dados destacáveis:

  • Mulheres equivalem a 37,3% das roteiristas creditadas, o que ainda está longe do ideal, mas é muito melhor se comparado aos índices de diversidade racial.
  • Em três das dez séries, mulheres são maioria na equipe de roteiristas creditadas (“O Mecanismo”, “Coisa mais linda” e “Onisciente”). Obs.: há apenas uma profissional creditada em “O Mecanismo” (Elena Soares).
  • Em três das dez séries, o número de roteiristas mulheres e homens creditadas é igualitário (“O Escolhido”, “Sintonia” e “Irmandade”). Obs.: há apenas dois roteiristas creditados em “O Escolhido”.
  • Não há roteiristas transgêneros creditados.

O percentual também segue o padrão da pesquisa de Diversidade de Gênero e Raça de 2016 da ANCINE. À época, 68% dos profissionais que assinavam roteiros de longas de ficção eram homens. Percebe-se que há muito mais diversidade de gênero no audiovisual brasileiro do que racial, mas no geral, não há equidade.

A narrativa no audiovisual brasileiro segue dominada por homens brancos.

Produtoras e diversidade regional

Das dez séries analisadas, sete são de produtoras baseadas em São Paulo e uma no Rio de Janeiro. Duas das produtoras (LB Entertainment e Boutique Filmes) produziram duas séries cada.

A centralização é tão grande que metade das produtoras são estabelecidas na mesma região do município de São Paulo (Zona Leste, área nobre da cidade). A O2 Filmes também tem sede no Rio, na mesma região da sua vizinha carioca, Zazen Produções (ambas em área nobre).

Apenas duas das dez séries (“O Mecanismo” e “O Escolhido”) tem narrativas baseadas fora do sudeste. “3%” se passa em uma região fictícia.

Colocando em outras palavras: a produção de séries de ficção brasileiras e originais da Netflix é centralizada no eixo Rio-São Paulo, tanto no fomento quanto nas narrativas.

Números gerais por série

Importante frisar mais uma vez: essa foi uma pesquisa desenvolvida apenas com recursos disponíveis na internet e, na maioria das vezes, escassos.

Nem todas as produtoras disponibilizam detalhes de creditação em seus sites, nem há um padrão de creditação nos episódios disponíveis no serviço de streaming.

Portanto, há alguns roteiristas assistentes e colaboradores que não estão inclusos nessa lista em função da disparidade de acesso às informações das séries. Contudo, isso não alteraria o cenário geral de falta de diversidade na criação.

Além disso, os números não refletem totalmente a diversidade de profissionais, pois alguns dos 59 roteiristas creditados trabalharam em mais de uma dessas dez séries (até mesmo por produtoras diferentes), o que reforça mais uma vez a tendência centralizadora do mercado nacional.

A equidade como política, não apenas como discurso

A Netflix Brasil tem uma postura progressista em seus posicionamentos em redes sociais, sobretudo com as discussões raciais recentes no Twitter.

Postagem no Twitter

Contudo, percebe-se que, na primeira dezena de títulos de séries de ficção nacionais lançada pela plataforma, não houve exatamente uma preocupação no investimento em produtoras que incentivam a equidade racial e de gênero na equipe criativa, mas apenas no elenco.

Até que ponto a política de diversidade de uma empresa se resume a uma imagem superficial e não a práticas que transformem de fato a estrutura, desde a base? Essa reflexão também estende-se às produções da Globoplay, Amazon Prime, HBO Brasil e demais plataformas de streaming.

Postagem no Twitter

A diversidade na criação não garante qualidade, é verdade, mas certamente será positiva para uma representação narrativa mais honesta, que não reproduz estereótipos ou até mesmo discriminações.

Por fim, uma reflexão importante: mulheres não precisam ser maioria apenas em séries que falam sobre “mulher”, “feminismo” ou pautas que as reduzam a uma caixa.

Isso também vale para pessoas negras. Discutir racismo é importante, sim, mas roteiristas, diretores, atores e artistas negros em geral têm muito mais a apresentar, e não devem ser cogitados em uma produção criativa apenas quando o tema é racismo.

Com quantas pessoas negras nós trabalhamos? Quantos autores negros nós lemos? Qual foi a última autora que nós lemos? Quantas diretoras e roteiristas mulheres nós admiramos?

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