“A borboleta, o sonho e o corvo” — Elaborar para não repetir
“[…] Se dependesse só dos artistas, o mundo ficava parado em frente a uma mesa de bar” (p. 17)
“Vem, vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer”
(Pra não dizer que não falei das flores — Geraldo Vandré, 1968)
Como é boa a sensação de se deixar levar por um romance, principalmente um desses cujo mistério no qual habitam suas personagens cai como uma névoa sobre o leitor e o inspira a quem sabe ver sua própria vida e os acontecimentos corriqueiros de forma poética. As páginas de “A borboleta, o sonho e o corvo” transcorrem de forma suave enquanto a questão paira no ar: sonho ou realidade? Se estivermos falando sobre realidade psíquica, os sonhos são tão reais quanto o que vivenciamos quando estamos acordados. Kafka já nos havia mostrado em “A Metamorfose” que o momento do despertar é o momento mais perigoso do dia, quando ainda restos oníricos confundem a nossa percepção de espaço-tempo. Afinal, é agora ou é outro tempo? Somos nós mesmos ou aquele que éramos no sonho? Quais são os restos do passado que sobrevivem ainda hoje, em nós?
Apreciei que a autora deu bastante importância à linguagem dos sonhos, do espaço vazio entre as memórias do passado e do presente, permeadas por qualquer acaso da vida, por associações feitas em uma mesa de bar, lapsos de memória ou momentos durante o banho, devaneando sobre uma cena de anos atrás, “o tempo tropeça em si próprio, sofre acidentes e se estilhaça. Talvez para que ele não sinta o gosto frio do arrependimento” (p. 59). Os fantasmas, os restos de eventos e momentos mal resolvidos, em algum momento, vem para cobrar os sobreviventes: “Teresa logo entendeu que é a imaginação que tantas vezes lhe mostra a realidade. E a realidade está impregnada pela imaginação. Passou a conviver com seus fantasmas” (p. 59).
São personagens de mal com suas próprias histórias, assombrados por pedaços mal resolvidos de suas vidas, de alguma forma seguindo um caminho errante e tentando se reencontrar, como, por exemplo, Teresa, cuja história familiar é marcada pela mentira e pela miséria da guerra e da tortura, seus avós fugiram da guerra na Rússia, para serem confrontados com a ditadura militar no Brasil, que levou seus filhos, pais da personagem. Teresa tem sua história marcada pela mentira e pela ausência. Primeiro, os avós que emigraram da Rússia, mostrada como um inferno branco e gelado, depois, a morte dos pais é atribuída a um acidente de carro (“A falta da morte compromete a vida”), quando, na verdade, seu mundo desmorona quando ela descobre a verdade sobre ambos. Talvez por isso ela seja uma personagem que está sempre em fuga desse passado fantasma, sempre nômade, de uma cidade a outra, nunca criando raízes, afinal, suas raízes são sinônimo de abandono e incerteza. Não pude deixar de lembrar da personagem homônima do romance “A Insustentável Leveza do Ser”, cujo passado também era espinhoso e aprisionador.
Além de Teresa, Santiago, um advogado em crise de meia idade, com uma história familiar marcada pela doença mental e indiferença, hoje, precisa lidar com escolhas que fez no passado e que mudaram completamente o rumo de sua vida, uma tarefa extremamente angustiante essa a de ficar pensando “e se…”. Por último, outro personagem principal, o médico aposentado do IML, Rogério Queiroz, cuja participação na ditadura é revoltante, mas justificada por razões que ele crê racionais, algo que observamos ainda em muitas pessoas hoje, a negação e a burocratização da maldade.
É interessante perceber o quanto a formação profissional da autora molda os rumos da história, Andreia Fernandes possui formação em Física e Teatro, coisas que podem parecer completamente opostas, mas, segundo ela mesma, não há nada mais criativo do que mexer com as substâncias de quais trata a ciência da Física. Em relação ao Teatro, pode-se perceber a experiência de estar sobre o tablado em frente a plateia, também, como um exercício de criatividade e um momento de penumbra, no qual a realidade se confunde com o sonho:
“[…] Teresa avançava sobre o tablado. Ao sentir o chão sob os pés, a luz quente dos refletores arder no rosto, o medo se dissipava. Corpo e espírito se expandiam. Alcançavam o escuro da plateia, os olhares atentos. As respirações suspensas. A audiência não mais um monstro prestes a engoli-la. Ao contrário, era uma força que a revigorava. Ela, então, se movia livremente por onde sonhos e sombras se agitam” (p. 16).
A borboleta azul é um símbolo recorrente durante o livro, “o bater das asas de uma borboleta nos confins do mundo provocou tremores em vários pontos do planeta” (p. 45), o que indica o poder de reação em cadeia que cada um de nossos atos possui, é no bater das asas de uma borboleta que o passado e o presente, as luzes e as sombras se confundem, um símbolo de transformação. Há também o corvo, “esse pássaro não existe no Brasil…mas na Europa. Na Torre de Londres, na Sibéria…Nos Montes Urais…” (p. 44), historicamente utilizado como um arquétipo do agouro, impossível não lembrar de Edgar Allan Poe e o seu poema “The Raven”.
O corvo pode representar o passado das personagens, que vem cobrar seu preço após muito tempo adormecido, como um lembrete de que, em algum momento, precisamos nos haver com o que já se foi, mas ainda o é, daí a borboleta, que possibilita a transformação, uma luta eterna de forças opostas, sonho e lucidez, consciência e inconsciente. Decifra-me ou devoro-te. As ondas do Oceano Atlântico que vão e voltam como repetições incessantes das cenas que vivemos e que se infiltram em nossa mente como enxurrada.
O metrô e o trem, espaços urbanos no geral, como lugares angustiantes e claustrofóbicos, transmitindo a sensação de estarmos cada vez mais perto do “inferno”, vejo como uma metáfora de nossa própria mente, ao que concerne o nosso inconsciente, subterrâneo, mas que sempre volta, se repete e tenta se fazer ouvir. “O inferno são os outros”, mas o que seria mais angustiante do que termos acesso aos nossos pensamentos mais profundos?
A autora pinta belos e melancólicos retratos das personagens nas paisagens onde vivem, o Rio de Janeiro e a Praia de Copacabana são cenários que dão vazão aos conflitos internos desses sujeitos. Vemos a cidade por uma ótica incomum: ao invés das cores e do calor, Garota de Ipanema tocando ao fundo, o que vemos é um Rio de Janeiro cinzento, úmido e assombroso, paralelo com a paisagem de desolação dos Montes Urais da Rússia, uma região extremamente hostil e mortífera. Tudo isso para relacionar as batalhas e perseguições da Revolução de Outubro na Rússia, com as torturas e censuras ocorridas durante o período da ditadura militar no Brasil. Essa imagem é referenciada na capa do livro, o mosaico do calçadão de Copacabana manchado de sangue.
Com os capítulos breves e incisivos, outros mais reticentes e abstratos, encontrei dificuldade em interromper a leitura, pois tinha a impressão de que poderia perder o fio da meada, como um sonho do qual não queremos acordar, seguindo o fio pelo labirinto da psique das personagens. Tecendo esse fio, a autora conseguiu criar uma atmosfera de ficção sobre um evento muito grave e sério que ocorreu em nosso país, mostrando ser um livro extremamente importante no cenário atual de intolerância e discurso de ódio.
As coisas tendem a se repetir quando esquecemos do nosso passado ou tentamos fugir dele, sempre haverá um homem de preto espreitando às nossas costas. Espero que ainda consigamos enxergar borboletas azuis nesse momento de tantos corvos negros sobrevoando o nosso céu, mesmo que, por enquanto, elas batam as asas apenas em sonhos.
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