“A cabeça do santo”: uma história sobre fé e família

Carol Vidal
Revista Subjetiva
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3 min readFeb 22, 2021
Foto: Carol Vidal

Ler “A cabeça do santo”, de Socorro Acioli, me fez lembrar da minha infância. A trajetória do protagonista Samuel, que, ao se abrigar na cabeça oca de Santo Antônio, descobre que pode ouvir as preces direcionadas ao santo, traz à tona um aspecto forte na cultura brasileira: a fé. E na minha vida isso não foi diferente.

Minha avó paterna tinha um defumador e nos rezava com ele nas noites de Ano Novo. Por ter vivenciado diversas perdas de familiares maternos, muitas missas de sétimo dia fizeram parte da minha vida, mesmo que não frequentássemos a Igreja Católica regularmente — embora eu tenha estudado em colégio católico quase a vida toda, com direito a fazer primeira comunhão e tudo, oportunidade em que ganhei da minha avó materna o terço que aparece na foto acima. No meio de tudo isso, hoje em dia sigo o Espiritismo, que também esteve, de alguma forma, presente na minha vida desde cedo pela minha tia materna.

Essa “salada mística”, tão comum no nosso país, foi despertada na minha memória ao me aprofundar não só na vida do protagonista, mas dos moradores da cidade de Candeia, no interior do Ceará. Esse livro é uma história sobre fé e sobre família. Quando Samuel parte a pé de Juazeiro do Norte rumo a cidade natal de seu pai para cumprir o último desejo de sua mãe, ele, a todo momento, é confrontado com a sua (falta de) fé. Ao entender que ouvia as preces para Santo Antônio, precisa lidar com seu ceticismo e ver cair por terra muito do que ele achava acreditar — ele parece experimentar, de uma forma diferente, a fé que sua mãe sempre teve e que ele achava que não pertencia a ele.

A mistura de crenças com a qual tive contato também aparece na história em alguns momentos. A mãe de Samuel, por exemplo, é devota do Padre Cícero, ao mesmo tempo em que ficamos sabendo da tradição de todas as mulheres da família dela saberem exatamente o dia que vão morrer. Essa capacidade extrapola o que professa a fé católica, assim como a experiência de Samuel dentro da cabeça de Santo Antônio — o que não impediu que os devotos prontamente acreditassem nele.

Um grande acerto do livro é a importância que dá para os personagens secundários. Sujo, maltrapilho e sozinho no mundo, Samuel encontra no jovem Francisco uma amizade e companheirismo que só havia experimentado com sua mãe. Ele e outros moradores de Candeia têm vida e história que importam e ajudam a montar o quebra-cabeças da narrativa, que ganha força conforme as páginas vão avançando. No início, pode causar estranheza quando a narração foca em determinados acontecimentos e personagens sem envolver o protagonista, porém, no final, tudo é muito bem amarrado e o resultado, satisfatório.

É muito interessante também como esse livro traz a familiaridade da nossa vivência enquanto brasileiros. Em maior ou menor grau, é possível se identificar com aspectos da narrativa, especialmente para quem nasceu ou mora no interior (o que não é meu caso, apesar de reconhecer o fascínio que as cidades pequenas me causam).

Outro tema presente e que também (infelizmente) nos é muito comum é o descaso dos políticos com a população, abandonando a cidade à mercê da sorte. Quando não foi possível encaixar a cabeça de Santo Antônio no corpo em cima do morro, ela ficou abandonada no chão e passou-se a acreditar que cidade havia sido amaldiçoada, o que levou muitos a abandonarem tudo e ir embora. Mas já não havia o prefeito feito isso muito antes?

De leitura rápida e envolvente, “A cabeça do santo” tira o melhor de cada aspecto desses comentados e entrega um resultado final bem satisfatório. Esse é um livro com a cara de um Brasil muitas vezes esquecido e ignorado, mas com saberes cheios de riqueza.

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Carol Vidal
Revista Subjetiva

Carioca que mora em Salvador. Escritora e podcaster que ama cozinhar (palavras e comidas). Conheça meu trabalho: linktr.ee/carolvidal_