A carne e a merda

_erinhoos
Revista Subjetiva
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12 min readOct 17, 2017

«Que a população foi se ocultando progressivamente não tinha nada que ver com o aspecto central da coisa, e era apenas um epílogo que não alterava em modo algum a firme vontade daquela gente de procurar o precioso alimento. Era, por ventura, dito epílogo o preço que exigia a carne de cada um? Mas seria miserável fazer mais perguntas inoportunas, e aquele prudente povo estava muito bem alimentado».
Virgilio Piñera, 1944.

Jogadores de cartas, Otto Dix, 1920

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Ou então meu estado quase intencionalmente conduzido pelo consumo não prudentemente refletido daquele comprimido é que, ao longo dos dilatados instantes que segui de cócoras observando o barulho que meus fluidos excretores faziam ao tocar a areia, tivesse me levado a acreditar que havia esquecido as chaves no píer, quando na verdade repousavam intactas engatadas no cadeado que pendia do precário pórtico do Salvatore.

O Salvatore situava-se a aproximadamente quatrocentos metros do píer, de onde era possível se ver, com sorte, um pôr do Sol oval e alaranjado, e com o azar habitual, o rubor envergonhado da água tingida pelos detritos que vertiam diutunarmente pelo canal, e que vinham do Santa Fé. O abatedouro que ostentava sacrossanto título enfeitava aquele fragmento decadente do porto a meros trezentos metros de distância do píer. Salvatore era um hotel cuja relação de hospitalidade era exclusivamente marcada pela companhia assídua de artrópodes de diversas estirpes no insalubre lavabo do diminuto quarto. Apesar da proximidade, o píer situava-se, de certa forma, entre os estabelecimentos, como se desenhasse em arco uma pequena esquina, a partir da qual se estendia a lingueta de onde pendiam pequenas embarcações, pescadores e usuários de cigarros de palha e haxixe.

Não obstante santo, o domingo é o mais fúnebre expediente do vilarejo.

As famílias se dividem nessas tardes mortas entre o ritual dos canais abertos e a abertura ritual de um canal com o divino. As ruas se esvaziam e, com exceção da alta temporada — quando o encontro entre o paladar voraz dos turistas e as vieiras que forram todo o assoalho marinho se torna economicamente urgente — os nativos preferem evitar o porto. Fogem da água salgada aos domingos como ojerizam os moluscos que são a fonte única de provisão econômica em toda a baía. Rodeados de seres aquáticos cuja dignidade comensal ignoram, os pescadores, como os cubanos, gostam mesmo é de carne vermelha. Nutrem por ela uma paixão improvável, e se destacam dos agrupamentos vizinhos em função da pecuária de subsistência. Nem na quaresma o devoto povo autoriza o consumo de pescados.

A implementação do tabu de origem desconhecida — uma espécie de patrimônio imaterial da esquisitice — tinha implicações econômicas e políticas decisivas. Em trinta e oito anos de emancipação, apenas em duas ocasiões a cidadela foi governada por pessoas que não eram donas do abatedouro, tamanha a importância que era dada ao rito de conversão de bovinos e suínos em picadinhos e carrés. Tratava-se, na mais marcante dessas ocasiões, da eleição do filho do diretor do Santa Fé, que tinha apenas dezoito anos, e foi encontrado desfigurado e sem vida apenas alguns dias após sua posse, pendurado por um gancho ao lado de diversos animais escalpelados e sem nome. Conta-se que, a partir de tal incidente, aquele que ousasse entrar sozinho no abatedouro passaria a se encontrar regularmente nos sonhos com o rapazote encharcado de sangue e vestido com a mesma roupa com que fora encontrado avariado. Naturalmente, tratava-se de uma enorme besteira, que, na qualidade de estrangeiro, nunca ousei todavia contestar. Que de fato o defunto frequentasse o sono perturbado de diversos moradores, devia-se, sempre pensei, a uma espécie de imaginário coletivo histérico. Eu mesmo cheguei a sonhar com o garoto sem nem mesmo sequer tê-lo visto alguma vez em vida.

Os rumores faziam parte do cotidiano de todos os habitantes do povoado. Era, por assim dizer, o momento mais criativo da vida daqueles homens e mulheres. Em cinco meses de estadia, cataloguei cerca de vinte e cinco burburinhos que pude ouvir só dentro do perímetro do Salvatore. Variavam entre lugares reprováveis, pessoas mal intencionadas, qualidade da carne, mulheres moralmente duvidosas até vazamento de petróleo, filmagens da Globo e golpe parlamentar.

Certamente a cidade guardava alguma história sobre mim, a que eu não tão cedo teria acesso.

E lá estava eu, tendo calafrios enquanto defecava na areia da praia, em uma tarde laranja de domingo, enquanto cada qual, em sua casa, obedientemente se dedicava a Deus, ao Faustão e — nos insterstícios entre ambos — à fofoca. Havia, poucas horas antes, ingerido uma drágea que me indicaram na botica como mágica, junto ao almoço — naquele dia, uma batata de microondas com cream cheese, cujo consumo, a despeito do vencimento, ainda me soava autorizado. De fato, os grilhões da minha prisão de ventre foram destruídos, e agora o que acontecia no meu intestino era uma espécie de rebelião. Estava meditando no píer quando percebi que meu esfíncter havia sido rendido. Conduzi-me como pude até o quinhão mais discreto da praia contígua — e sua habitual fantasmagoria dominical — , e agachei, alforriando assim o material fecal que há tanto tempo se encontrava arraigado às minhas entranhas.

Aqueles minutos foram infinitos. Menos pela revolução estrondosa que atravessava incontinenti meu reto, e mais pela constatação assombrosa de que à minha frente — fato que ignorei na pressa incontida da minha evacuação — jazia, em estado lamentável, o corpo de um jovem garoto.

2

Me aproximei daquela pintura de Otto Dix a que um dia chamaram corpo, ainda que um tanto preocupado pelo caminho viscoso que as minhas fezes desenhavam na parte inferior da minha coxa. Testes de inteligência emocional não foram desenhados para momentos como esse. Como recém-abatido, as moscas que o circundavam — que agora disputavam o espaço entre a merda e a carne — eram ainda escassas, o que, num reflexo de quem já consumiu muito enlatado americano, me fez pensar que aquela carnificina havia ocorrido há poucos minutos — quiçá inclusive enquanto eu meditava. A segunda coisa que minha mente urbana pensou foi “Meu Deus! Como vou explicar que estava cagando ao lado de um jovem morto?”. Optei, em um gesto de covardia atroz — que só agora admito — , por voltar para o píer e buscar a minha chave que, vim a saber mais tarde, nunca havia — por um lapso de memória — saído do cadeado que firma a corrente do portão do Salvatore, cujo fim é proteger o patrimônio de seus hóspedes. A corrente e o cadeado puderam proteger meu patrimônio naqueles meses, mas não foram suficientes para conservar minha sanidade aquele dia e nos dias subsequentes.

Lá estava eu de volta ao píer, atormentado pela ideia parasita de que o causador daquele cenário de horror havia subtraído do local minha chave, e me procurava agora a fim de exterminar qualquer evidência ou testemunho do crime. Em muitos sentidos nunca foi tão precisa a sensação de se flagrar sendo um “cagão” — e lá estava eu exercendo todos os matizes da expressão. Atônito, queria simplesmente evitar os logradouros públicos, pois entendia não ser interessante ser identificado como a besta fera homicida — já me caía feito uma luva o título de viajante esquisitão de meia idade. Em um cálculo despropositado entre medo, ansiedade e covardia, corri para o Salvatore. Meus pés me levaram para o Santa Fé.

Deu-se assim que, enganado pelo meu desespero e pela simetria do arco portuário, me deparei com as arcadas do abatedouro. Foi porque temi meu próprio abate que, num gesto automático e irrefletido, corri. Meu coração ansioso implodiu quando me deparei com o rastro de sangue que conduzia ao lugar que imaginei ser a edificação onde havia firmado estadia. Tomado pela realidade, me vi em choque.

Pouco convidativa, a fachada do Santa Fé trazia consigo uma série de elementos cuja mixagem parecia ser obra de um esteta pouco ortodoxo: arcadas romanas, anjos barrocos, um ícone de Nossa Senhora Aparecida, grades enferrujadas, tipografia naval. Mais do que nunca, parecia pouco convidativo atravessar seu pórtico. Além das paredes brancas habitualmente marcadas pelo vermelho alaranjado da ferrugem e pelo magenta terroso dos corpos bestiais sangrentos impiedosamente desossados, havia também desta vez um espesso rastro de coágulos que refletiam inocentes o poente rosicler que já era patente. Fitei o portão entreaberto e, enquanto era tomado por um vórtice de sentimentos que transitava entre a curiosidade mórbida e alguma responsabilidade cívica, me urinei.

— Você viu alguma coisa?

Como em um enlatado de suspense, fui surpreendido, pelas costas, em plena micção, pela interpelação de um homem. Como em um conto de terror, ele trazia consigo um aspecto pouco afável em sua apresentação. Os sulcos que rabiscavam integralmente o corpo famélico e impactado por quatro décadas de exposição direta ao Sol acumulavam em seus afluentes filetes de sangue fresco, de sangue humano, porra! Seu semblante, contudo, parecia refletir tão somente a curiosidade infantil expressa na pergunta que me fizera. “Você viu alguma coisa?”. O homem estava nu. De seu pênis pendia um preservativo, que trazia em seu interior conteúdo brancacento, e na superfície externa um glacê acafetado. Não me mijei mais porque já não havia mais o que mijar.

Fitei-o longamente. Fitei-o longamente como alguém que, absorvido pelo retrato de uma guerra, vê sua paz sequestrada no ambiente asséptico do Museu. Reconheci o homem. Era pescador. Sua esposa devia estar rezando o terço, seus filhos entediados defronte à TV. Tomado por uma espécie de instinto de sobrevivência, respondi, após intermináveis segundos, aquilo que me soou o mais pertinente no momento.

— Não.

Pogrom, Lasar Segall, 1937.

3

Sempre fui um homem corajoso. Quando adolescente liderei um grêmio estudantil. Parece besteira falar isso agora, eu sei, mas foi quando aprendi a lidar com a tarefa árdua de tomar as decisões certas sob forte pressão. Edifiquei toda a minha identidade social a partir dos negócios que geri, e que então permitiam com que me fixasse onde quisesse, inclusive naquela vila pacata e provinciana de pescadores simples. Nada disso me pareceu propriamente útil naquele fim de tarde. Toda a hombridade que construí ao longo de alguns decênios, de repente a vi sucumbir, toda ela de uma vez, no ato de pronunciar balbuciante aquela palavra de três letras.

— Não.

O homem deu as costas e saiu andando.

Fiquei preso numa transversal do tempo até o Sol se esconder no firmamento. Andei a passos muito lentos do Santa Fé até o Salvatore. Cruzei o pórtico, e só então percebi que a chave do cadeado não havia sequer deixado a pensão. Deitei e dormi por quatorze horas seguidas, como se evitasse acordar para encarar a dura realidade de ter vivido o terror e a impotência. Sonhei que nadava no esgoto.

No dia seguinte a notícia era generalizada. Os rumores entraram em ebulição. A mixórdia na vila era tamanha, que, durante as horas em que me recusei a levantar da cama, ainda que acordado, era possível ouvir as lorotas dos marujos e as lamúrias das carpideiras.

Ainda que apegado à ideia de que o melhor a se fazer era não sair daquele muquifo naquela atípica segunda-feira, não era possível ignorar a urgência com que a micção se impunha sobre minha subjetividade. As escadas rangiam mais do que o normal. O barulho da urina se precipitando no vaso encardido era mais opaco que o habitual. E o cream cheese, que em seguida acessei, estava finalmente azedo. Saltei para o pátio do Salvatore, que servia de refúgio comum a alguns poucos pescadores, uma espécie de convênio tácito entre o dono do hotel e aqueles homens que, nos intervalos da labuta, alimentavam a alma e seus pequenos sonhos adúlteros com uma aguardente amarga, a mais amarga que já tomei. Lá fui introduzido ao assunto.

Tive que fazer um enorme esforço para dissimular o fato de ter sido testemunha ocular do referido crime. Não é todo dia que alguém se flagra em semelhante situação, mas, modéstia à parte e, contra qualquer expectativa, tive um desempenho dramático que hoje considero exemplar. Exemplar de um otário submetido a um julgamento invisível.

Foi então que fui informado que aquele tipo de acontecimento não era propriamente inédito. Eram uns cinco homens, cinco reedições seriadas que guardavam inconveniente semelhança com a silhueta e a textura do corpo assassino com que cruzara na tarde anterior. Não havia luto no reticente diálogo. Apenas uma postura reflexiva, como se, no ato desinteressado de fazer jus a uma morte, buscassem abrir a caixa de Pandora de uma biografia irrelevante. A verdade, disse um deles, mais alterado pelo consumo etílico que os demais, é que aquele moleque era um “afrescalhado”! Afrescalhado como aquele jovem prefeito encontrado içado por um gancho no Santa Fé, aquele mesmo que perturbava o sono daqueles que ousassem adentrar sozinhos o estabelecimento. Afrescalhado como um outro que foi encontrado empalado no pedregulho. Afrescalhado como um quarto largado ao Deus dará no canal, como um quinto, um sexto.

A carne rejeitada e depositada em condições anti-estéticas ao relento, era carne de difícil digestão.

Fariam o quê, a partir daí, os colonos? Amaldiçoar o quinhão letal da costa como o fizeram com o abatedouro? Ou celebrar a desova daquele pedaço putrefato de gente como celebravam a Dança dos Famosos? Abandonei a conversa com o estômago embrulhado. Respirei fundo, atravessei o pátio e, decidido a descobrir onde seria velado e enterrado o jovem defunto, atravessei o pórtico do Salvatore rumo a algum lugar onde eu pudesse conseguir alguma informação sobre o paradeiro do cadáver.

— Como assim os pais não querem enterrar?

Como jamais fizera antes ao longo da estadia no porto, conversei com inúmeros coletores de vieiras, pescadores, comerciantes e carolas. Por detrás de toda a comoção, havia um sentimento comum, de que havia algo fora do alcance dos pacatos gestos e corações. Se os pais não queriam velar o rapaz, não eram também os demais nativos que o fariam. Ninguém ali pleiteava a responsabilidade sobre aquele corpo, sobretudo porque, afastado do olhar e olfato públicos, simplesmente era impassível de incomodar.

Deu-se que os dias seguiram sem a realização de qualquer rito fúnebre. Minha perplexidade acerca do descaso sobre aquele corpo crescia na mesma proporção que o restabelecimento dos ânimos entre os locais. No domingo seguinte, enquanto as famílias voltavam a se dedicar às maminhas, lombos, orações e Faustões, voltei para o local onde minha merda fazia sétimo dia. Larguei algumas flores amarelas à distância. Não me demorei, a imagem era forte, e ainda me perseguiam — acordado e em sonho — todas as cenas aterradoras por que havia passado no lancinante dia. Não retornei mais à praia, nem ao píer. Durante um mês e meio, só saí do Salvatore para comprar batatas, cream cheese e a aguardente amarga que aprendi a tomar. E para me dirigir à rodoviária.

A carne fresca, afrescalhada, apodreceu por semanas na areia. Não permaneci tempo suficiente no vilarejo para acompanhar o estágio mais avançado de decomposição daquele rapazote. Não me despedi de ninguém. Antes que fosse consumido pela miséria moral daquele lugar, dei adeus ao alaranjado poente. O destino, alguma paz.

Epílogo

O grande terror que assolou toda aquela vila — e a segue assombrando — é a ignorância. Os habitantes, reservados, acomodados entre a poltrona e o genuflexório, cultivam suas fobias como as vieiras. Recusam-se a encará-las, e só as desenterram das profundezas — razas — do mar para as repassar a outrem. De resto, a praia, ruborizada de vergonha e pelos detritos do Santa Fé, cumpre sua novena diária, levando e trazendo pedaços esquecidos de humanidade através das solitárias marés.

Impressões sobre o desafio do editor

Sensacional a iniciativa de S. Paiva e posta em marcha pela Redação Subjetiva, de mobilizar os/as colaboradores/as da publicação para saírem da “zona de conforto literária” e, através do desafio do editor, experimentar formas outras de produção textual.
Não sou leitor ávido de literatura de terror ou suspense (comecei e parei em Agatha Christie e Marcos Rey), e tampouco tenho me dedicado à ficção. Quem acompanha meu perfil aqui, sabe que o ensaio é a minha principal zona de conforto, o lugar em que me sinto à vontade, como cientista social e antropólogo, para elaborar reflexões críticas sobre o mundo em que vivemos.
Minhas principais inspirações para a produção deste conto em particular foram: a obra dramatúrgica e literária do grande escritor cubano Virgilio Piñera (em especial o conto A carne, de 1944, o romance A carne de René, de 1952, e a peça Aire Frio, de 1959), o romance Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios de Marçal Aquino (2005), os primeiros episódios — que andei assistindo — da sétima temporada de American Horror Story, a tela Jogadores de cartas de Otto Dix (1920), a tela Pogrom de Lasar Segall (1937) e a chamada série “Bíblica” de Cândido Portinari (1942–1944) — cujo estilo é obviamente tributário de Guernica, de Pablo Picasso (1937).
Agradeço imensamente à oportunidade, e espero que o resultado tenha saído interessante!

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_antropólogo, barista informal, errante incorrigível, cantor de karaokê, sérião nas horas vagas