A desilusão em Kafka; ou A felicidade é um placebo

Gabriel Revelim
Revista Subjetiva
Published in
4 min readFeb 18, 2020

[Este texto contém informações sobre os desfechos finais das obras A metamorfose, O Processo, e A Primeira Dor. Não recomendado para as pessoas que possuem receio de ter a finalização da leitura comprometida]

Franz Kafka foi um escritor de língua alemã que viveu e produziu durante as primeiras décadas do séc. XX, mundialmente conhecido por ser autor de clássicos como A Metamorfose e O Processo. Apesar de ter seu nome vinculado aos romances, e principalmente às novelas literárias, Kafka também teve uma vasta produção no ramo dos contos, gênero mais sucinto, simples e, geralmente, que conta com uma narrativa mais leve.

Justamente neste gênero literário é que se encontra A primeira Dor, texto que discorre sobre a rotina de um jovem trapezista que na busca pela perfeição de seu ofício, conduz sua vida das alturas e raramente desce de seu trapézio. Ele vive em seu instrumento de trabalho. Devido a isso o contato humano fica dificultado, bem como outras coisas simples de seu cotidiano; ademais, o foco de sua existência se mantém voltado completamente para seu trapézio, fato que, até o momento inicial da história, parece não incomodá-lo.

Algumas das características mais marcantes da obra kafkiana se encontram presentes neste conto, porém, de forma muito mais contida: a premissa é difícil de ser imaginada; o clímax é entregue logo no princípio do texto; e o protagonista está preso dentro de uma adversidade que parece ter mais força do que si — a escolha por não descer do trapézio e a busca pela perfeição em sua atividade.

O conto termina com o trapezista acordando de um sono inquietante, e, em prantos, pedindo encarecidamente para que seu empresário lhe compre mais um trapézio, pois ele já não se sente satisfeito com somente um. O empresário garante que providenciará o que o jovem anseia, e o consola até que ele possa voltar a dormir tranquilamente.

E é nesse ponto que este protagonista de Kafka se difere dos demais: devido ao pouco espaço que o conto fornece o personagem até se depara com a dor, contudo, não se desenvolve com ela. Ele não alcança completamente a ciência de sua insignificância, não tem noção da sua completa impotência frente à vida. Talvez isso ocorra pela pouca idade e pela falta de experiência do artista, vide que o empresário — mais velho e experiente — ao se deparar com a frustração do jovem, se preocupa, pois ele já sabe o que estará por vir. O empresário sabia que essa nova insatisfação nunca se saciaria, e que o menino sempre iria querer mais.

Foi assim que, aos poucos, o empresário acalmou o trapezista, e então pôde voltar ao seu canto. Mas ele próprio não estava calmo; em segredo, por cima do livro, contemplava o trapezista com uma profunda tristeza. Uma vez que esses pensamentos começassem a atormentá-lo, será que haveriam de parar algum dia? (p. 13)

Frame da animação produzida pelo polonês Piotr Dumala inspirada na vida de Franz Kafka.

É impressionante a consciência de Kafka sobre as frustrações da vida. Um ponto de virada muito importante em suas obras é justamente o momento em que os personagens se deparam com suas fraquezas, pois, uma vez que reconhecem sua pequenez, o foco se altera. Foi assim com Gregor Samsa, que no início se esforçava para retomar à condição humana, e quando percebeu que isso parecia impossível e que ele seria para sempre um inseto, passou a se preocupar apenas em continuar vivo. Bem como Josef K., que tentava achar meios para ser inocentado em seu processo, porém, quando percebeu que a Justiça era uma incógnita imprevisível, se conteve em simplesmente fazer o que lhe pediam os oficiais do Estado.

Os personagens mais desenvolvidos de Kafka não buscam mais se livrar do problema, mas sim, em se livrar da angústia que o problema traz. Eles sabem que a raça humana é limitada e simplesmente incapaz de resolver determinadas adversidades. E quando se deparam com esta realidade — demasiadamente cruel — tais personagens nunca mais conseguem ser plenamente felizes. E essa situação, apesar de não ser explícita, fica evidente na nostalgia sentida por eles, e no certo apego a um passado em que não tinham consciência de suas limitações.

Essa é a diferença para o trapezista: por não ter se desenvolvido, ele ainda consegue sentir tranquilidade e paz. Bem como diz o título do conto, ele apenas sentiu a primeira dor. Quando o jovem perceber que será impossível alcançar a perfeição que tanta almeja e que ele nunca se sentirá pleno, pois vai estar sempre insatisfeito buscando melhores resultados, talvez nunca mais ele se tranquilize.

E assim se distinguem as pessoas: há aqueles que não têm consciência do vazio de seus atos, e, assim, são felizes — reforçando a máxima de que, em alguns casos, a ignorância realmente é uma dádiva; e há aqueles que se conhecem, conhecem o mundo e todas suas angústias, e justamente por isso são incapazes de encontrar a paz. Talvez porque os caminhos que prometem levar à felicidade funcionam como placebo, e só dão bons resultados enquanto acreditamos neles e não conhecemos profundamente seus métodos — indiscutivelmente ineficazes.

Referência:

KAFKA, Franz. Um artista da fome seguido de Na colônia penal & outras histórias — tradução de Guilherme da Silva Braga. Porto Alegre, RS: L&PM, 2017.

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Gabriel Revelim
Revista Subjetiva

Graduando em Direito, aspirante a artista. Fundador da Revista Ilegalmente Legal.