A fúria que move montanhas

Ana C. Moura
Revista Subjetiva
Published in
5 min readApr 17, 2020
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E não se trata de uma fúria rancorosa, dessas que a gente sabe que existe e que de vez em quando rondam a gente, dessas que todo mundo diz pra gente não ter, com aquela sabedoria profunda, a do psicólogo, psicanalista, a da mãe, a da vó, a da mãe de santo, a do pajé, a do frei, padre, papa. “Porque corrói e destrói a gente por dentro, minha filha”.

Não, definitivamente não é desse tipo de fúria que eu falo. É de um tipo diferente, mais específico. Uma fúria que pode ter outros nomes, é verdade. Não é uma raiva ensimesmada, ou um ódio profundo (embora, às vezes, essas emoções também a acompanhem), e sim uma fúria força-motriz, que dê conta de mobilizar umas forças internas e se juntar a uma luta externa e coletiva para pensar realidades.

Essa fúria fortalece. Por incrível que pareça. Porque produz um tipo de fortalecimento que amalgama umas coisas por vezes soltas no peito, querendo sair. E aí sai, em forma de fúria-rugido, uma insurgência, um levante, uma revolução. De algum jeito, em alguma medida, às vezes só às vezes. E tudo bem.

Mas a fúria como força não é papo disfarçado de coach não, viu? Daqueles discursos retóricos, furados e distorcidos que te convidam pra participar de um webinário com uma chamada no estilo “assista a esse vídeo e dê uma virada definitiva na sua vida!”, usando umas frases clichês que, se você observar bem, são meio vazias de sentido porque dão voltas voltas sem falar nada. Ninguém vai usar a fúria pra te convidar pra uma reunião da Hinode ou mesmo pra um culto da Universal, fica tranquilo.

É uma fúria de movimento, que produz movimento, que produz incômodo, que produz movimento a partir do incômodo. E a gente sabe que o incômodo pode ser mola propulsora para um salto transformador. Porque sacode a poeira, essa poeira da estagnação, de achar que o mundo não sai do lugar, que não pode mudar e que, por isso, melhor deixar como tá mesmo, se acomodar com o que incomoda. É este o ponto: esse tipo de fúria, descrito neste texto, é avesso à acomodação e canta pelos cantos, como mote e lembrete, aos sete ventos, aquela parte da música do Teatro Mágico que diz para “não acomodar com o que incomoda”. Um trocadilho que a minha sede por linguagem gosta. Uma música de nome um tanto controverso e que a fúria também pode alimentar uma reflexão sobre as estruturas do mundo. De novo o mundo.

É uma fúria que se frustra com o mais do mesmo, sabe? E não é uma fúria de tédio, que fica deitada no sofá olhando pro teto achando que não tem nada pra fazer. É mais uma fúria de não se conformar com as perdas. Uma fúria inconformada, que, de novo, se incomoda profundamente. Com as injustiças, com as estruturas de violência, com o sistema de desigualdades calcado em tantas exclusões como premissa premeditada para atender a um tipo muito específico de interesse. O mesmo interesse de sempre. E aí voltamos à fúria, a esse incômodo com o que é insuficiente.

É uma fúria de possibilidades. É uma fúria-enfrentamento, que olha pras coisas e pensa: “hum, isso pode ser melhor, como?”. E, de pensar assim, pensar estratégias. E, de pensar estratégias, não esquece que a prática também é fundamental, executar o que foi planejado.

Mas esse olhar furioso é feito de uma fúria que não cai no erro de se perder em meio a um perfeccionismo bobo, paralisante, de nunca achar que nada tá bom o suficiente, que nunca vai ser bom e que por isso bora deixar pra lá. Não, no, non, nein. Isso seria vazio, e a fúria não é vazia. A fúria é o contrário disso. É uma fúria-estímulo, uma fúria-água, águia, tempestade e sede, impulsionadora de voos, dá seus rasantes em busca da libertação de todo mundo e é asa que anseia acolher geral na luta. A fúria como força, a fúria como inclusão.

É uma fúria que, ao mesmo tempo, entende ser necessário o momento de descanso do corpo e mente que habita. Afinal, não há corpo e não há mente que aguentem viver bem e melhor sem parar. Porque, para refletir e movimentar a partir da fúria, essa aqui, também é preciso parar um pouco, contemplar, ganhar um pouco de perspectiva. E só se ganha perspectiva fazendo alguma coisa para aquietar os corações, rir, relaxar. Um constante equilibrar-se na corda bamba.

Realmente acho que essa espécie de fúria pode ser muitas coisas. Ser furioso com o que demanda nossa fúria e escolher o tipo de fúria que teremos são caminhos para manter a sensibilidade de se indignar e se insurgir com o que tá péssimo. A fúria é reconhecer quem anda com a gente na trincheira e se colocar como aliado em efetiva cooperação. É olhar especialmente para as margens e para o que é considerado desvio, e assim questionar o poder que instituiu essas categorias. É saber que ficar em cima do muro é juntar-se ao lado que tem uma queda por muros quando o que a gente quer (ou deveria querer) é justamente a queda desses muros. É entender que não se posicionar já é um posicionamento, que se isentar é se render ao alheamento anestesiante e que isso não pode ser razoável. É, por fim, recusar o convite da indiferença, que faz a gente passar inerte pelas coisas.

Mas é lógico que isso pode ter sido só mais um exemplo do meme: “fonte: vozes da minha cabeça”. Mais uma viagem desta mente peculiar que me acompanha, uma confraria esquisita de uma leva de pensamentos que foram decantando, fermentando, acumulando de ouvidos, conversas, fragmentos aqui, acolá. Eu sei lá. Só sei que, se for pra sentir alguma fúria, que seja essa capaz de mover montanhas. Para luchar siempre y sin perder la ternura.

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Ana C. Moura
Revista Subjetiva

• Poeta • Revisora • Tradutora • Editora de Projetos da Fazia Poesia • A fúria como fôlego • A palavra como teimosia • O lirismo como libertação •