A História atrapalha o trânsito
Não era melhor esperar até domingo?
Sexta-feira, 28 de abril de 2017, foi dia de uma — já podemos dizer — histórica greve geral no Brasil. Várias cidades tiveram um dia muito diferente, com pouco trânsito e muitas manifestações.
Como era de se esperar, também houve críticas de analfabetos políticos nas redes sociais. Desde o batido “desrespeitaram meu direito de ir e vir”, queixa que não ouvi quando os protestos tinham como alvo o governo Dilma, até a bizarrice de defender manifestações apenas aos finais de semana — preferencialmente aos domingos — , pois durante a semana é “coisa de vagabundo que não trabalha”.
Isso mesmo. Como se certas demandas pudessem esperar até o domingo. Tudo para “não atrapalhar o trânsito”.
Boa parte de quem diz essas idiotices julga-se liberal. Algo meio complicado no Brasil, onde já vi muitos “liberais” contrários à legalização do aborto, por exemplo. Nada mais incoerente.
Mas há um problema maior. Pois a ideologia que essa gente acredita defender também já fez “baderna”. E pior: em dia útil. Sendo o maior exemplo a Revolução Francesa, iniciada com a Tomada da Bastilha em 14 de julho de 1789, uma terça-feira. Na cabeça dos “liberais” brasileiros de 2017, não só seria preciso esperar o domingo (19) como também se condenaria o vandalismo contra a odiada prisão que simbolizava o absolutismo monárquico na França; em 1789 eles teriam pena das paredes e grades danificadas, da mesma forma que em 2017 quase choram pelas vidraças quebradas dos bancos — aqueles que nos cobram taxas abusivas.
Podemos lembrar mais casos insuspeitos de serem “vagabundagem de comunista sindicalista” (como se todo sindicato fosse de esquerda). Um bom exemplo foi a queda do Muro de Berlim, ocorrida em uma noite de quinta-feira, 9 de novembro de 1989: aqueles alemães não tinham de ir trabalhar no dia seguinte? Pior ainda: a passagem entre os dois lados da barreira fora liberada pelo governo da Alemanha Oriental, mas ainda assim a muralha foi “vandalizada” por aquele bando de “baderneiros”.
Outro se deu apenas algumas semanas depois, na Romênia. O ditador comunista Nicolae Ceausescu, no poder desde 1965, foi derrubado por protestos iniciados na cidade de Timisoara e que tomaram a capital Bucareste em 21 de dezembro de 1989, uma quinta-feira; Ceausescu e a esposa precisaram fugir do cerco ao palácio do governo usando um helicóptero na manhã da sexta-feira (22).
Em 1991, a linha-dura comunista na União Soviética tentou um golpe para depor Mikhail Gorbachev e deter suas reformas que, segundo alegavam — não sem razão, como veríamos — , conduziam o país à dissolução. O presidente russo Boris Yeltsin, que meses depois daria início a reformas ultraliberais na Rússia independente, convocou a população a resistir, e tudo isso aconteceu em dias úteis: da segunda-feira (19 de agosto) até a quarta (21).
Bom, no fundo o que essa galera que reclama do “protesto em dia útil” talvez tenha mesmo é ojeriza ao povo em mobilização. Provavelmente prefira “ordem”, se possível com tanques na rua.
Pois bem: os seus golpes militares — que jamais serão “intervenções constitucionais”, como diziam faixas de gente que obviamente nunca leu a Constituição — também “atrapalharam o trânsito” e causaram muito transtorno a quem só queria ir trabalhar naqueles dias. O 1º de abril de 1964, dia em que tanques e soldados derrubaram o presidente João Goulart, foi uma quarta-feira.
E não é só no Brasil que os militares foram “baderneiros”. O golpe que instaurou a última ditadura na Argentina também foi deflagrado em uma quarta-feira (24 de março de 1976).
Já no Chile foi pior: além do trágico 11 de setembro de 1973 ter caído em uma terça-feira, o Palácio de La Moneda foi bombardeado pela Força Aérea. Nunca vi o general Augusto Pinochet — líder do golpe e ditador por 17 anos — ser chamado de “vândalo”.
O que, vamos combinar, não é surpresa. Pois para a direita, só vale gritar “vandalismo” quando é a esquerda que se manifesta.