A intervenção na vida do pobre

Coletivo Aurora Maria
Revista Subjetiva
Published in
6 min readFeb 22, 2018

A cidade do Rio de Janeiro esteve presente nos noticiários na última semana com diversas cenas de violência e criminalidade. Os bairros nobres — visíveis, como de costume — receberam uma atenção especial por terem sido palco de tais acontecimentos. A mídia se utilizou também da violência nos bairros pobres para que o discurso de que o caos se instalou e é necessário um basta servisse de justificativa para uma intervenção federal na segurança pública do Estado do Rio. Ou seja, quando a violência começa a ser frequente e incomodar os mais abastados financeiramente, algo precisa ser feito. A notícia que revolta e comove é a violência contra rico e turista que não pode mais tomar seu coco tranquilo na orla de Ipanema, quando é contra o pobre, é banalizada ou merecida. As duas ou três reportagens que se referem a esse último grupo não passam perto do número de desgraças não televisionadas. O caos que já está instalado há muito tempo nas áreas mais pobres só é enxergado quando pode ser usado em benefício da classe dominante. A violência faz parte do cotidiano dos pobres. Nós, como moradoras da zona oeste da cidade do Rio, podemos afirmar com toda convicção, pois vivenciamos dia após dias o perigo.

Não se pode olhar para uma sociedade extremamente desigual como se houvesse uma uniformidade e propor soluções que não contemplam a todos. Primeiramente, como já foi dito, a violência no subúrbio ou na favela é uma realidade diária, e não depende de épocas festivas, como o carnaval. Segundo: há insegurança até mesmo dentro da própria casa. O pobre não tem grandes grades na porta de um condomínio residencial e seguranças disponíveis 24h. Trabalha, normalmente, no centro da cidade ou outros lugares longes das áreas periféricas, sendo o seu deslocamento perigoso, pois passa por várias áreas consideradas de risco, e ainda reside em uma delas. Não é difícil imaginar que as pessoas pertencentes à classe dominante nunca tiveram que se abaixar no ônibus ou na rua por estar passando em um lugar que está tendo tiroteio, confronto, ou tiveram a preocupação de ver suas mães indo para o ponto de ônibus ainda de madrugada porque têm um desgastante caminho até o trabalho. Sem esquecer, é claro, que enquanto o policiamento nos bairros nobres são mais frequentes e sinônimo de proteção, nas áreas pobres eles causam insegurança e morte. O pobre está no meio do fogo cruzado entre criminosos e policiais, mas ninguém se importa.

Para os que negam essa realidade, um caso que figura bem a situação exposta é o de Amarildo. O pedreiro que foi levado por policiais e seu corpo não foi mais encontrado. O documentário “O Estopim” narra a sua vida e o seu desaparecimento, além de denunciar a relação abusiva entre policiais e moradores na Rocinha. Essa relação de opressão praticada pela força repressora do Estado é uma realidade não só da Rocinha, como de outras comunidades do Rio, onde os direitos fundamentais dos moradores não são respeitados. As garantias asseguradas pela lei acabam sendo meramente formais, pois nas favelas a ordem jurídica não existe. O Estado de Direito que vigora “morro abaixo” ou em favor das classes hegemônicas não se faz presente nos lugares carentes, deixando-os somente com um Estado Policial. No documentário “Morro dos Prazeres” é possível enxergar como a atuação do Estado se restringe somente à força policial, na guerra contra os pobres, onde a violência contra os direitos humanos é justificada por ser contra o mais terrível inimigo: o traficante. O filme traz a instalação das UPPs (Unidade de Polícia Pacificadora) como um exemplo falido do modelo militarizado de segurança pública. E que mesmo assim, o Estado insiste na má gestão, permitindo o exército na Maré, na Rocinha e agora, uma intervenção federal na segurança pública do Rio. Isto é, o governo federal assumirá a responsabilidade pela segurança pública do estado do Rio, por meio de um interventor, a fim de garantir a ordem.

Diante de tanto descaso, mais do mesmo e falta de resultados favoráveis, a expectativa não é positiva. Há um ilusionismo posto em prática de que tudo irá melhorar sendo abraçado por grande parte da população que está assustada com a violência e aceitando uma medida emergencial e passageira. Mas como diversos cientistas políticos, especialistas em segurança pública e antropólogos estão afirmando, aumentar a força repressiva não é a solução. E ainda delegar às forças armadas é uma covardia com os jovens que estão no exército e não tem uma formação de polícia ostensiva, mas principalmente aos pobres, pretos, moradores de comunidades, que terão seu sangue derramado como em uma verdadeira guerra civil, pois se trata de uma força bélica. Assim, só se perpetua o confronto do pobre contra pobre, pois quanto ao criminoso que faz parte do poder público mas também do crime organizado, nada acontece.

Tendo em vista que a intervenção como solução do problema de segurança pública é ineficiente, ela parece ter então verdadeiramente objetivos políticos. Durante o ano de eleição e término do desgoverno de Michel Temer, totalmente ilegítimo e de medidas impopulares, seria muito importante ser lembrado como o responsável por trazer a paz ao caos que o estado do Rio se encontrava, mesmo que essa paz se resumisse a uma breve cortina de fumaça. Com a ajuda da mídia, insistindo veementemente na violência como vimos, e após a intervenção, dando visibilidade somente ao que favorece, tem-se um pacto de manipulação. É uma saída vitoriosa após a possível não aprovação da Reforma da Previdência e a instalação de um ar de derrota do governo. Isso se de alguma forma Temer não tentar aprová-la de forma inconstitucional — dando uma pausa para votar a PEC — pois não se pode emendar a Constituição em momentos de intervenção federal, conforme o artigo 60.

Assim, não é difícil perceber por que a notícia desanima e se espera o pior. Quando um general do exército ainda declara que “Os militares precisam ter garantia para agir sem o risco de surgir uma nova comissão da verdade” é o mesmo que pedir a liberação para torturar e matar sem ser julgado, com a justificativa de que estava buscando a paz. Como sobreviver a uma intervenção onde os fins justificam os meios? Como sobreviver aos ataques aos direitos humanos se eles são negados aos pobres? Enquanto o Estado agir somente com força e repressão, e não discutir temas fundamentais como política de drogas, investimentos sociais, procurar revogar sua ausência em lugares carentes e debater sobre a reforma do modelo policial, torna-se difícil que algo mude. O problema da segurança pública tem raízes estruturais que precisam ser combatidas com um aparato social também, pois a violência é apenas um sintoma da crise toda. Enquanto não agirem nesse sentido, os pobres continuarão sofrendo intervenções nas suas vidas, e ainda mais as nossas mulheres invisíveis, que como mostramos aqui, são as mais oprimidas na relação de exploração-dominação. Tapa na cara, sumiços e tortura de suspeitos, assédio e falta de respeito com as mulheres, invasões nas residências sem mandado e uma série de arbitrariedades não são novidades e já acontecem dentro de uma democracia. Enquanto o Estado Democrático de Direito for seletivo e servir somente às classes hegemônicas, isto é, a estrutura capitalista baseada no privilégios de poucos e com uma democracia burguesa ilusória, os pobres continuarão sofrendo intervenções em suas vidas. Afinal, tiveram que aprender a sobre(viver) assim, pois nunca experimentaram do rol de direitos que o artigo 5º da Constituição garante.

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