A liberdade de admirar mulheres

Carolina Bataier
Revista Subjetiva
Published in
4 min readAug 2, 2017

Vocês, que foram criança entre os anos 90 e começo dos 2000, devem ter pelo menos uma vez assinado um caderno de enquete. Eu assinei vários.

Se você já nasceu arrastando um mouse, deixa eu te explicar. Era um caderno com uma pergunta em cada página, começando pelo seu nome, que passava de mão em mão entre os amigos da escola, a galera da rua. A gente colocava um número na frente do nome para que as outras respostas fossem identificadas de acordo com o autor. Por exemplo:

1- Carol
2- Amanda
3- Eduardo

Na sequência, vinham outras perguntas, de qualquer natureza. Desde “qual sua música preferida?” até “você fuma?” ou “se você pudesse mandar uma pessoa para a lua com passagem só de ida, quem seria?”, e as pessoas respondiam:

1- o joão guilherme do 8º A
2- a diretora
3- você!!!!

Enfim, se ainda existem cadernos de enquete perdidos por aí, eles podem servir de estudo sobre uma geração, ou uma parcela dela.

Certa vez, eu estava respondendo um e tinha a pergunta: quem é seu ídolo. Eu devia ter uns 11 anos. Escrevi: Dercy Gonçalves.

Quando eu era criança, admirava três mulheres famosas: Mara Maravilha, porque era uma morena numa mídia loira e eu, como menininha morena, achava aquilo bem legal; Elke Maravilha, por causa daquele tanto de anel que meio que me hipnotizava quando ela aparecia na TV falando e mexendo as mãos; e Dercy, porque ria muito e falava qualquer coisa que quisesse: puta, caralho, vai tomar no seu cu seu filhodumaputa. Eu queria ser igual a ela um dia.

Diante da minha resposta no tal caderno, um adulto me chamou para conversar. Explicou que eu não poderia considerar a Dercy um ídolo, que ídolo mesmo era, por exemplo, um tal de Gandhi. Contou que esse cara era uma alma boa, que tinha feito coisas incríveis sem usar a violência, só levantando a bandeira da paz. Eu pensei: legal. Depois, nos outros cadernos de enquete, quando tinha a pergunta “quem é seu ídolo?”, eu escrevia: Gandhi.

Se alguém encontrar um desses cadernos por aí, pode desconsiderar essa resposta. Ela jamais veio de lá do fundo do meu coraçãozinho — embora, claro, reconheça os feitos do homem. Eu ainda queria ser como a Dercy.

Contudo, parei de admirar mulheres em algum ponto entre a pré-adolescência e a vida adulta. Consigo lembrar das muitas de quem falei mal, procurei defeito, cacei no meio de tantos atributos um “mas”, mulheres de quem senti ciúme e inveja. Nosso reconhecimento como mulher passa por isto: entender a outra como inimiga.

Os mecanismos que levam a essa compreensão vão desde as piadas sobre a loira burra e a capa da revista Nova, dando dicas para não perder seu homem, até as insistentes perguntas sobre casamento e filhos quando a gente está aprendendo um terceiro idioma ou comandando uma empresa com 2 mil funcionários. Há ainda quem insista em nos ver como seres humanos feitos unicamente para o lar. E se o lar do comercial de margarina, com marido sorridente e filhos asseados, é o posto mais glorioso que uma mulher pode alcançar, qualquer coisa que atrapalhe isso é uma ameaça grave. A outra. A mulher que não sou eu. Essa, que deve ser rechaçada.

Conscientemente, ninguém pensa nisso. Mas na TV, todo dia deixam a mensagem de que mulher tem que ser, antes de tudo, bonita. Do lar. Recatada. Economista de supermercado. E quando a gente começa a perceber que não é bem assim, que é legal ser mulher com este corpo, esta voz e estas vontades, sejam elas quais forem, vem gente dizer que não podemos.

Tinha um cartaz desses de Facebook com duas imagens: de um lado, mulheres fardadas e armadas, com a frase: “Isso são mulheres lutando por igualdade”. Do outro, mulheres com peito nu, segurando cartazes de protesto, e a mensagem: “Isso são vadias querendo chamar a atenção”. Ou seja: eu só sou digna de respeito quando, abrindo mão da maternidade e do lar, desejo participar de um ambiente que é, convencionalmente, masculino. Quando peço respeito e aceitação pelo corpo com o qual nasci, daí já é demais. Daí não pode.

Esse tanto de distorção vai lá pro inconsciente de um jeito que ainda hoje, em 2017, tem mulher sendo submetida a casamento ruim e relacionamento abusivo porque ter um relacionamento, por pior que seja, é melhor que não ter. Porque a salvação da mulher é o homem, dizem. Porque a vizinha solteirona é uma coitada. A filha da dona Lourdes não é moça direita e a Luciana, onde já se viu, tão inteligente mas tão relaxada.

Então, faz um tempo, eu parei de procurar os “mas”. De tentar me convencer de que certas moças nem são tudo isso, porque elas são sim, são tudo isso e mais. Cada uma do seu jeito, são fodapracaraleo. A Luciana, a vizinha, a Giovana, a Maria, minha irmã, a colega do trabalho, a amiga do meu namorado e a ex dele. Todas mulheres que não são uma ameaça à minha existência enquanto mulher também foda. Todas mulheres que tiveram que erguer a cabeça para chegar onde chegaram, todas elas que ainda estão lutando, e que, sendo como são, me mostram um caminho feito de força e que aponta para a liberdade ❤

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