A meritocracia para Átila Iamarino e Stuart Mill

E seu inacreditável ponto de convergência com Francis Galton, um eugenista do século XIX

Pedro Vinicius Paliares de Freitas
Revista Subjetiva
9 min readMar 25, 2020

--

Átila Iamarino, biólogo, pesquisador e comunicador científico. Produtor de conteúdo para a internet há quase uma década, individualmente, através do canal “Átila Iamarino”, e, também, de forma colaborativa, através do canal “Nerdologia”, no YouTube.

John Stuart Mill, filósofo e economista britânico, que viveu entre 1806 e 1873, considerado por muitos como um dos filósofos mais influentes do Século XIX. Defensor ferrenho do utilitarismo e do liberalismo político, tendo grandes influências nos debates sobre liberdades individuais até os dias de hoje.

“O utilitarismo é uma teoria que defende que todas as ações humanas, individuais ou políticas, são tomadas racionalmente, tendo em vista o bem-estar que ela pode proporcionar. Segundo a teoria utilitarista, toda escolha é feita de modo a sempre produzir a maior quantidade de bem-estar. Isso é classificado como a teoria do bem-estar máximo.”

Francis Galton foi um importante estatístico do século XIX, criando conceitos usados até os dias de hoje nos estudos de estatística, também foi antropólogo e matemático. Era primo de Charles Darwin e criou o conceito de “eugenia” baseado em sua obra.

“A eugenia se refere a melhora de uma espécie através da sua seleção artificial. Galton a criou baseando-se (de forma equivocada) nos estudos de Charles Darwin. Essa seleção artificial proposta por Galton acompanhava a ideologia racista da Europa do século XIX, e essa ideia foi utilizada, majoritariamente, para reforçar o pensamento de superioridade eurocêntrico. Essa ideologia teve papel fundamental na formação do nazi-fascismo.”

Existe, porém, um ponto de convergência entre os três. Envolvendo, talvez, algo que não seja a especialidade de nenhum deles. Irônico, não? Bom, na verdade, é um ponto de convergência entre Stuart Mill e Átila, Galton apenas colabora com um dos instrumentos que criou durante seus estudos. Vamos tentar entender melhor esse ponto de convergência através dos próximos parágrafos.

Stuart Mill, como já vimos, é um dos renomados liberais do século XIX, e, dentro de seus estudos sobre liberalismo político e utilitarismo, existe um tom perceptível de crença à meritocracia. O liberalismo e o utilitarismo dessa época carregavam consigo, invariavelmente, um quê de egoísmo e elitismo. Se todo ser humano toma, naturalmente, decisões racionais e individuais visando a maximização de seu bem-estar, isso quer dizer que a natureza do ser humano pode ser considerada utilitarista, certo? Em outras palavras, egoísta. Ou, pelo menos, era nisso que Mill acreditava até algum tempo antes de sua morte.

Ao observar as crescentes mudanças que a Revolução Industrial estava promovendo na esfera social e econômica dentro no território britânico, Mill passa a enxergar o paradigma liberal do século XIX de outra forma, pois, ao se tornar um debate recorrente, as dificuldades que a classe trabalhadora enfrentava no pós-Revolução ganharam importância para os pensadores e filósofos da época. Em seu último livro publicado, “Capítulos sobre o Socialismo”, Stuart Mill reconhece falhas na teoria utilitarista, no sistema vigente, e na ideologia meritocrática. Segundo ele, as classes trabalhadoras que se consideravam socialistas, tinham, apesar de suas discordâncias, uma pauta em comum : a abolição da propriedade privada. Isso se explica a partir do momento que questões importantes, como, por exemplo, a liberdade de contrato para estabelecer salários, se davam como atribuições ordinárias da propriedade privada.

Assim, Mill classifica as classes trabalhadoras e menos afortunadas como acorrentadas à coerção da pobreza e à vontade do empregador, que foi abençoado pelo acidente do nascimento e herança, sem mérito. Para ele, existem dois grandes males na sociedade pós-Revolução Industrial, a pobreza e a miséria, que são causadas diretamente pela propriedade privada, pela dependência dos miseráveis para com os empregadores e com a liberdade salarial garantida por contrato.

A relação entre pobreza e esforço, ou pobreza e merecimento é praticamente inexistente, e qualquer ideia de justiça distributiva, ou qualquer proporcionalidade entre sucesso e mérito, no nosso sistema social, é tão claramente ilusória, a ponto de ser vista como romântica. Assim como a relação entre trabalho e retorno financeiro é, em geral, inversamente proporcional. Aqueles que pouco trabalham, mas foram afortunados na loteria do nascimento, continuam ricos, ou fazem mais dinheiro com pouco esforço, e aqueles que trabalham muito por não terem tido a mesma sorte, pouco, ou quase nada recebem. Afirmar que quem sofre com isso são os mais fracos, menos esforçados, ou menos merecedores, é uma ideia proveniente dos próprios estudos e ideias utilitaristas de Mill antes da publicação dessa última obra! Ora, se o mundo é injusto, o problema está na natureza humana utilitária, ao querer maximizar seu próprio bem-estar através de suas próprias decisões. Mas, como dito anteriormente, Stuart Mill reconhece isso, e afirma que esse raciocínio se ocupa apenas em tentar mitigar o mal desse tipo de ideologia.

“Sob o sistema social vigente, quase ninguém ganha, a não ser pela perda de um ou de muitos outros. Os socialistas chamam isso de guerra privada”

Átila Iamarino não parece estar muito distante, ou pensar muito diferente das últimas ideias publicadas de Stuart Mill. Em um vídeo postado no dia 09/12/2019, em seu canal pessoal,“Átila Iamarino”, chamado “O segredo da Meritocracia”, ele utiliza um instrumento criado por Galton para tentar explicar um pouco melhor o paradigma da ideologia meritocrática.

“Você já se perguntou porquê algumas pessoas têm tanto na vida, e outras têm tão pouco? […] E se eu te dissesse que eu conheço um aparelho que mostra as chances de alguém dar certo, ou de dar errado, de melhorar, ou piorar de vida?”

O aparelho referido por Átila é o tabuleiro de Galton, ou Quincunx, inventado por Francis Galton, que, ao criar o instrumento, queria medir a hereditariedade de características do corpo humano, a fim de embasar suas teorias eugenistas e a “melhora” da espécie humana através de sua seleção artificial.

Tabuleiro de Galton, ou Quincunx

O Quincunx funciona da seguinte forma; há uma plataforma móvel no topo, que se desloca na horizontal, para os extremos direito e esquerdo do tabuleiro. Essa plataforma deslocável é de onde as bolinhas vão cair dentro do tabuleiro, em direção às canaletas, que estão na parte de baixo do tabuleiro. Porém, antes de chegar às canaletas, as bolinhas que são despejadas através da plataforma móvel, vão de encontro aos pinos, no meio do tabuleiro. Cada pino oferece uma chance de 50% para a bolinha ir para a esquerda, e de 50% para a bolinha ir para a direita. Isso faz com que a trajetória final de cada bolinha que é despejada, seja imprevisível, assim, não é possível saber para qual canaleta a bolinha vai, antes que ela passe por todos os pinos e realmente chegue ao seu destino. Isso é chamado de caminhada aleatória.

Porém, quando despejamos muitas bolinhas através da plataforma (quando a mesma está localizada no centro do aparelho), observa-se um padrão :

Tabuleiro de Galton em sua distribuição normal

Isso ocorre porquê a chance das bolinhas tomarem a mesma quantidade de direções entre direita e esquerda, visto que a chance de cada direção se resume a 50%. Agora, proponho um exercício, assim como Átila faz em seu vídeo. Imagine que as canaletas representem o desempenho financeiro de alguém. Para a esquerda, temos desempenhos financeiros ruins, pobreza e miséria, e para a direita, mais riqueza e bem-estar financeiro, e que cada pino no caminho percorrido, seja uma decisão boa (para a direita, levando ao sucesso financeiro), ou uma decisão ruim (para a esquerda, representando o fracasso financeiro), Assim, cada bolinha despejada no tabuleiro será um indivíduo, e a plataforma pela qual as bolinhas são despejadas será o ponto de partida de desse indivíduo (representando a condição financeira na qual o nascimento do indivíduo o colocou, ou, como diria Stuart Mill, a loteria do nascimento).

Agora, vocês lembram que a plataforma superior é móvel? Isso quer dizer que podemos fazer o mesmo teste que fizemos anteriormente, e observar a distribuição das bolinhas através das canaletas, depois que todas percorrerem o caminho. Ao deslocar a plataforma móvel para a esquerda, supomos que o ponto de partida dos indivíduos que estão sendo lançados ao mundo (bolinhas) não é favorável, assumindo que esses indivíduos não tiveram sorte na loteria do nascimento, e acabaram nascendo em uma família em condições de pobreza, miséria ou dificuldade financeira. A distribuição, nesse caso, se dá dessa forma :

Átila Iamarino demonstrando a distribuição com a plataforma deslocada para a esquerda

Isso ocorre porquê a chance das bolinhas caírem nas canaletas da esquerda, quando a plataforma está deslocada para a esquerda, é muito maior. Além disso, é possível observar que a quantidade de bolinhas nas canaletas da direita é insignificante perto da quantidade de bolinha nas canaletas mais à esquerda. Isso quer dizer que, para sair de um ponto desfavorável na vida (como a má sorte na loteria do nascimento, por exemplo), é necessário um conjunto de fatores, mas, acima de tudo, sorte. Atíla concorda com Stuart Mill, ao afirmar que uma dos únicos fatores realmente importantes e influentes na vida de uma pessoa é a sua situação de nascimento, além da boa sorte nas suas decisões, e que, sair disso com esforço ou mérito, é praticamente impossível, pois a relação entre mérito e esforço, ou esforço e sucesso, é praticamente insignificante, para não dizer inexistente.

O mesmo processo pode ser observado quando movemos a plataforma para a direita, representando um ponto de partida mais favorável aos indivíduos, com acesso a recursos, educação e boas oportunidades. Assim, as canaletas da direita ficam mais cheias de bolinhas, e as canaletas mais a esquerda, quase não recebem bolinhas depois de percorrer o caminho. Isso quer dizer o que, exatamente? Quer dizer que, quando se nasce em situações favoráveis e se tem boa sorte na loteria do nascimento, o indivíduo tem pouquíssimas chances de acabar em uma situação desfavorável, mesmo depois de passar por todos os pinos, enfrentando suas decisões, sorte ou azar.

É importante salientar que o ponto de partida dos indivíduos (referente à posição da plataforma móvel), não se refere apenas a condição financeira, refere-se também, e principalmente, eu diria, à sua cor de pele, à situação da cidade, estado ou país em que você vive, a sua estrutura familiar, a sua natureza sexual, o ambiente em que você cresce, a disponibilidade de educação e boas oportunidades, assim como inúmeros outros fatores.

É fácil observar o mundo a partir da ótica meritocrática quando se tem boas oportunidades, boa educação, disponibilidade de recursos, ausência de preconceito em relação à cor da sua pele, gênero ou natureza sexual. Da mesma forma, é impossível julgar a posição de alguém na sociedade sem levar em conta o seu ponto de partida, assim como a sorte, o azar, as oportunidades que essa pessoa teve e todas as dificuldades que enfrenta diariamente na sua vida. Para ter uma boa condição financeira, quando se sai de um ponto de pobreza e miséria, os indivíduos depende, além de boas decisões, mais da sorte do que de qualquer outra coisa! E, como também diz Stuart Mill, para sair de um ponto de partida favorável e financeiramente bom, e acabar em uma das canaletas da vida que representam dificuldade financeira e pobreza, é necessário, além de muitas má decisões, muito azar!

Desta forma, podemos concluir que o único fator realmente influente e importante na vida, referente ao sucesso financeiro ou posição social de um indivíduo, é o nascimento. Vivemos em um sistema social completamente injusto e desumano, que usa do discurso utilitarista, liberal e individualista diariamente para cobrar que sejamos cada vez mais trabalhadores e menos questionadores, até que o lucro se torne a única forma de satisfação e sucesso na nossa sociedade. Usar o tabuleiro de um estatístico eugenista do século XIX para provar isso matematicamente é especialmente irônico, satisfatório, catártico e mitigatório que eu já vi para aliviar tudo que ouvimos diariamente sobre meritocracia, esforço e mérito.

Inscrevam-se no canal do Átila, ele está há quase dez anos produzindo conteúdo de qualidade e promovendo a ciência num meio tão injusto em relação a isso, que é a internet. Apoiem mais canais e conteúdos como o dele, vale a pena.

--

--

Pedro Vinicius Paliares de Freitas
Revista Subjetiva

Estudante de Ciências Sociais na Unicamp. Leitor de Filosofia, Sociologia, História e Romances. Interessado em política.