A Morte da Lutadora Inexistente (ou “A Anatomia de uma Notícia Falsa”)

Rodrigo Ortiz Vinholo
Revista Subjetiva
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9 min readJan 31, 2018

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(Reprodução: "Hoje Notícias")

Recentemente, vi um amigo compartilhar uma notícia que me chamou a atenção. Era a história trágica de uma lutadora de UFC que, em uma luta, havia morrido após sofrer um traumatismo craniano por conta de um golpe. O foco da matéria era o fato de que a outra lutadora, que teria desferido o golpe, era transgênero, com o texto indicando que, por isso, ela teria uma vantagem física que a favoreceria na lua. A notícia, logo descobri, era sequência de uma outra, de uma semana antes, que falava sobre a ocasião do traumatismo.

Vários elementos no compartilhamento no Facebook me chamaram atenção, e após uma verificação rápida de alguns elementos da matéria, cheguei a uma conclusão: era uma notícia falsa.

Meu amigo julgou ser mais cauteloso não condenar a notícia tão cedo, e aguardar por outras atualizações, especialmente porque não considerou a causa de morte estranha. Em seus termos, achou “bem previsível”. Outros, comentando no post, concordaram com a provável veracidade e, no caso, com a visão de mundo implícita na matéria.

Eu havia investigado o suficiente para ter certeza da falsidade da matéria, e já havia lido algum histórico ao assunto — e as reações das pessoas sobre o assunto -, o suficiente para que pudesse apontar as contradições com alguma propriedade. E, assim, notei que essas duas matérias eram uma lição perfeita nas hoje tão faladas “fake news”.

Vamos seguir a ordem de fatos que eu usei para confirmar minha tese:

Para começar, vamos às matérias. A primeira, de 22/1, fala do traumatismo craniano e a do dia 29/1 fala sobre a morte da lutadora.

O primeiro dos problemas é o site em que a matéria foi publicada. “Hoje Notícias” é um portal que, em uma batida de olho, chama a atenção pelas imagens fora de proporção e por um foco quase obsessivo, na primeira página, para um único político conservador que tem uma legião de fãs maníacos. Vocês sabem de quem estou falando, e se não sabem, bata entrar no link e acessar a página principal do site para descobrir.

O fato de ser um portal pequeno ou de baixa qualidade, sendo justo, não é um motivo em si para justificar a falsidade da notícia. Mas o fato de ser uma notícia internacional — afinal, estamos falando de uma suposta luta na Malásia, entre uma lutadora belga e uma malaia — tende a ser algo difícil de conseguir com exclusividade por um portal pequeno.

Sim, eu escrevi “exclusividade”. Procurando notícias a respeito da mesma matéria, nós encontramos apenas as duas matérias do site, reproduções do mesmo texto em fóruns e, convenientemente, compartilhamentos de uma página de campanha presidencial do político conservador feita por seus asseclas, utilizando essa matéria como justificativa para falar sobre (em seus termos) “cota trans”. Não há uma origem para a matéria.

Isso foi o suficiente para mim. Como já trabalhei como jornalista, sempre me lembro de uma verdade infalível sobre a área: toda notícia é uma narrativa e não existe matéria jornalística isenta, do mesmo modo que não existe narrativa isenta. Seja pelo posicionamento da publicação ou dos jornalistas, pelo modo que algo é mostrado, pelo portal por onde surge, pelas imagens que usa e por mil outros aspectos, todos os fatos que nos são entregues possuem algum viés. Uma mesma informação pode ser positiva ou negativa por diferentes pontos de vista.

Nas fake news, muitas vezes temos um fato real que é manipulado para ganhar um viés específico. E existem os casos, como este, que são baseados em alguma discussão real, mas não oferecem nada de verdade. A polêmica, no caso, é a aceitação de pessoas transgênero no UFC, e se apoia em afirmações como as da lutadora Ronda Rousey, que teria afirmado que via vantagem de performance em uma lutadora trans, e teria gerado polêmica no universo das lutas (e outros esportes) por essa afirmação.

No caso, uma das duas matérias faz uma referência direta a Ronda (sem citar seu sobrenome, chamando-a de “lutadora Ronda”), tentando utilizá-la para gerar embasamento para a polêmica que quer causar.

A narrativa que a matéria quer embasar deve ter ficado muito clara a essa altura, certo? Nesse sentido, a fake news serve tanto para reforçar uma visão de mundo que é defendida por alguns, aumentando a certeza dos indivíduos sobre seus próprios vieses e lhes dando munição para defendê-los, quanto, claro, para acumular cliques e visualizações que geram renda de anúncios para as matérias.

Se você não sabe, boa parte da renda de sites de notícias na Internet, em especial de sites sem assinaturas, é através de anúncios, o que esse portal, no caso, é cheio.

Considerando o posicionamento específico e os locais de compartilhamento focados com viés político, entendo que o objetivo principal de tais matérias é atender ao embasamento de uma narrativa bem específica. É o caso, como disse meu amigo, do que parece “bem previsível” para a visão de mundo dessas pessoas.

Oras, se elas já esperavam que uma lutadora transgênero pudesse tornar uma luta muito injusta, essa morte apenas convenientemente embasa tudo que elas acreditavam e que consideravam previsível. E essa é a força das fake news.

Mas mesmo antes de levantar para meu amigo a falsidade da notícia, eu não parei por aí.

Fiz algo mais simples do que tudo que havia feito até então: eu procurei o nome das duas lutadoras: “Shang Mau Bi”, a falecida, e “Nilika Drobonev”, a transgênero que teria causado sua morte. Adivinha só quantas referências externas eu encontrei para o nome das duas? Apenas nessas mesmas matérias, fóruns e posts de Facebook da página da campanha do político conservador. Eu diria que era simplesmente conveniente demais se não fosse o fato de que eu sei que não há qualquer conveniência, a essa altura. As lutadoras não existem.

Afinal, pense bem: se qualquer uma das lutadoras tivesse alguma relevância, haveria mais referências a respeito das duas, especialmente porque esse tipo de luta é de interesse mundial e, repito, é uma notícia supostamente internacional, sobre uma luta entre dois países distantes entre si, portanto é certo que, como comumente ocorre, haveria referência em inglês. Mas não há sequer uma ficha técnica — nem um artigo de Wikipédia — mencionando o nome das duas. Poderia-se dizer a língua-pátria de Shang Mau Bi dificultaria o processo, mas se Nilika Drobonev, mesmo com seu nome que soa russo, fosse realmente belga, seu nome seria encontrado em uma busca, já que os belgas usam o mesmo alfabeto que nós.

Isso já comprovaria, mas fiz mais uma última pesquisa para meu amigo. Usei as imagens das matérias. A primeira leva a imagem de duas lutadoras de UFC em uma luta. O outro mostra um grupo de pessoas asiáticas — supostamente malaias — chorando.

(Reprodução: “Hoje Notícias”)

Existe uma função muito simples do Google Imagens, mas que boa parte dos usuários ainda usa muito pouco: se você colocar o endereço de uma imagem publicada — ou mesmo se salvá-la e fizer o upload do arquivo no sistema do Google — ele localizará por semelhança outros sites usando a mesma imagem.

Assim fica fácil descobrir a primeira imagem, das duas lutadoras, em inúmeros de sites de notícias da ADCC, a “Abu Dhabi Combat Club Submission Wrestling World Championship” falando sobre… UFC! Aqui, nomes de órgãos e datas não são poupados, e descobrimos, em uma simples matéria, que as lutadoras da foto são a australiana Bec Rawlings e a estadunidense Carla Esparza. Duvida? Veja de novo a foto da matéria e note o “AUS” na roupa da lutadora da esquerda. Ah, é, e nenhuma das duas é transgênero.

Só que o ponto todo é: isso é um fato que ninguém vai conferir, porque ele facilmente justifica todo o texto e valida a narrativa.

Isso nos leva à foto da segunda matéria. Ela é mais grave porque é mais obscura e, ao mesmo tempo, diz muito menos. A foto que temos é de asiáticos chorando, e o título e o texto da matéria (cujo texto cita uma irmã da lutadora morta) nos fazem crer que são seus familiares sentindo a dor da perda.

Para esta, o autor da notícia foi bem longe, mas não é impossível de achar: uma busca por imagem traz pouquíssimos resultados, incluindo menções em um outro site de confiabilidade duvidosa chamado “News Atual”, mas logo vemos que este apenas reproduziu o mesmo texto, sem tirar nem por.

A fonte da imagem, ao que parece, é um outro dos resultados obscuros dessa busca: um site de notícias em tailandês, em um artigo sobre uma modelo que teria chorado, em 2015, em uma cerimônia funeral da morte do primeiro-ministro do país(Na dúvida, é só jogar para o Google traduzir esse site). O autor da farsa está de parabéns por caçar uma fonte tão inesperada para sua história, mas não foi à prova de falhas.

Eu apresentei essas hipóteses ao meu amigo e aos outros comentaristas de seu post no Facebook, e ainda que reconhecendo que havia algo de estranho, nenhum deles me pareceram de todo convencidos. Considerando o teor das discussões, entendo que havia o desejo de que a narrativa ainda fosse atendida.

Mas isso continuou na minha cabeça, e pesquisei mais. Assim, poderíamos parar por aqui, mas já fomos tão longe, vamos até o final, porque ainda tem lições bem boas sobre os elementos que constituem as fake news.

Olhando os dois textos, também há um detalhe que poderia ter sido simples de forjar, mas que foi ignorado: não há qualquer menção à fonte. Nem das imagens utilizadas, nem do canal de notícias ou de assessoria de imprensa que poderia ter fornecido a notícia. O portal sequer assina com o nome de um jornalista. É uma notícia que nasceu por geração espontânea, assim como toda “verdade” que existe ali.

Se olharmos bem, há outra coisa extremamente conveniente: fala-se que são duas lutadoras, fala-se que foi um “torneio de vale-tudo” e se dá data e hora específicas, mas o nome do torneio — a imagem sugere que seja o UFC — é completamente omitida, e não não há qualquer registro em vídeo sobre a luta.

Informações de baixa chance de verificação e de alta dificuldade de verificação (como detalhes específicos de dia e hora de uma luta) são uma maneira fácil de atribuir valor uma notícia, pois elas dão suporte à narrativa criada. Não só isso, o local distante foi claramente escolhido para dificultar a verificação e toda informação fornecida é o mais opaca possível. Isso se nota até mesmo pela falta de comprometimento com a identificação da “lutadora Ronda.” Há até uma tentativa de disfarce da opacidade e pretensão de neutralidade com a menção a um estudo externo que realmente existe, mas ele não torna verdade qualquer um dos outros fatos.

Soma-se a essa opacidade “que pode ser verdade” o fato de que não existe uma, mas duas matérias. Uma história em dois capítulos, publicada no tempo exato do que é indicado na matéria. É o tipo de coisa que parece errado de questionar, mas que é extremamente fácil de burlar, até mesmo retroativamente, se for o caso.

A segunda matéria, que fala da morte da lutadora inexistente, abusando da emocionalidade sobre o “desespero” da família da falsa atleta morta, entre textos repetidos da primeira matéria e problemas de construção de frase, deixa escapar a intenção por trás dos dois textos:

“O Cômite Esportivo Malasiano foi duramente criticado por ter autorizado a luta contra uma adversária transsexual, familiares afirmam que Shang aceitou a luta porque foi ameaçada de ser retirada do Vale Tudo local por preconceito.”

A narrativa se completa. Não apenas se finaliza tudo afirmando que uma luta com uma lutadora trans é algo que deveria ser “duramente criticado”, como a morte da lutadora é colocada como fruto de ter sofrido uma ameaça de retirada “por preconceito”. Duas pequenas frases que são perfeitas para qualquer um que se oponha à simples ideias de uma lutadora transgênero absorver e sentir-se satisfeito na confirmação da própria narrativa.

Ao que tudo indica, especialmente a partir das palavras acima, havia uma tese do autor do texto : “Não acredito que transgêneros têm lugar em lutas (ou talvez “nos esportes”, ”na sociedade” etc.), mas se digo isso, sou criticado como preconceituoso. Se eu tiver um evento que prove que minha opinião não representa preconceito, mas sim que era algo que salvaria uma vida, poderei dizer isso sem que me acusem de preconceito, e poderei usar esse texto para isso.” E assim, formou-se a narrativa das duas matérias.

Mesmo com todas as evidências acima, eu sei que ainda existirão muitas pessoas que vão ficar em dúvida. Talvez me acusem de qualquer tendenciamento simplesmente porque eu estou questionando a narrativa.

E é aí que mora o perigo: notícias falsas não são um problema apenas porque são falsas. Elas são um problema porque elas são falsidades que atendem os desejos do que as pessoas gostariam que fosse realidade.

Você pode até dizer que ninguém desejaria a morte de uma lutadora, mas eu lhe digo o seguinte: se essa morte está provando um ponto que muitas pessoas queriam provar, ela é mais do que bem-vinda para essas pessoas.

(Ah, e por via das dúvidas, eu tenho print das matérias. Se elas sumirem, só me avisar.)

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Rodrigo Ortiz Vinholo
Revista Subjetiva

Publicitário, jornalista, escritor, professor e pessoa estranha.