O Arquétipo da Mulher Sábia: conhecimento, vivência e espiritualidade

As diferentes representações de um dos arquétipos mais antigos na construção de histórias.

Bruno Tavares
Revista Subjetiva

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Lady Galadriel, a definição da Mulher Sábia por excelência

Para construir qualquer narrativa, seja ela visual, literária ou oral, é inevitável que o contador de histórias recorra em algum momento a convenções ou modelos, seja para caracterizar os personagens, para ambientar a trama ou conduzir a história em si. Esses recursos partem do conhecimento comum, compartilhado por um povo, e auxiliam o autor no intrincado processo de desenvolver um enredo.

Os modelos disponíveis são vastos, mas nessa série vamos conversar principalmente sobre aqueles utilizados para a criação de personagens no cinema e na TV, com alguns exemplos da literatura também. Olhando para os personagens masculinos, teremos o Guerreiro, o Rei, o Mágico e o Amante. Já entre as personagens femininas, analisaremos a Sábia, a Mãe, a Donzela e a Indomável. Mas antes, vamos a alguns conceitos rápidos:

Não é tudo a mesma coisa: o Tropo, o Estereótipo e o Clichê

Quando falamos nesses padrões narrativos é comum atribuirmos a eles nomes que, num primeiro momento parecem sinônimos, mas que na verdade possuem significados distintos. O que analisaremos aqui são os Tropos, ou Arquétipos, dispositivos narrativos utilizados pelo autor, que servem como atalhos para descrever situações ou pessoas e são compreendidos, consciente ou inconscientemente, pelos membros de uma cultura.

Já os Estereótipos são as “formas” dadas a esses modelos. Por exemplo, ao pensarmos no arquétipo da Mulher Sábia, a maioria de nós imagina uma velha feiticeira, ou uma mulher madura, que conquistou sua sabedoria ao longo dos anos vividos. Algo semelhante à Oráculo de Matrix ou Minerva McGonagall da saga Harry Potter. Estas representações são estereótipos da Mulher Sábia.

McGonagall: a sabedoria acadêmica posta em prática.

Os Clichês, por sua vez, designam aqueles estereótipos tão comuns que o público reconhece de imediato. Eles criam na história um território confortável para a audiência. Muito demonizados pelo senso comum, a verdade é que não existe nada de errado com um clichê, desde que ele seja bem realizado. O que tende a incomodar o público são os clichês preguiçosos, que aparecem sem justificativas plausíveis. A jornada de um jovem órfão é um clichê que pode ser bem aproveitado, como em Desventuras em Série e A Invenção de Hugo Cabret, ou subutilizado como em A Orfã.

Feitas as devidas apresentações de conceitos, chegou a hora de conhecermos o primeiro tropo dessa série: A Mulher Sábia.

A mais experiente das Irmãs Hécate

A Mulher Sábia, também conhecida como Velha Sábia, é um dos arquétipos mais antigos e duradouros. Nesse tropo, compaixão e bondade se relacionam com magia, mistério e natureza. Em certo sentido, ela é o Espiritual em forma humana. Como já disse Jung, ela incorpora a personalidade “mana” de uma pessoa, o poder espiritual fundamental presente em todos nós.

Na maioria dos arranjos narrativos, a Mulher Sábia integra o trio das Irmãs Hécate, ao lado da Donzela (jovem e ingênua) e da Mãe (centrada e protetora). Elas representam diferentes fases da vida da mulher e também três fases da lua: crescente, cheia e minguante. Se pensarmos em Freud, a Mulher Sábia equivale ao Superego, representando as regras e as convenções sociais.

Ainda que nas histórias nós a conheçamos completamente formada, a Mulher Sábia foi moldada por uma vida dedicada à busca de conhecimento. Geralmente ela não se identifica como sábia, ao contrário, esse título é concedido a ela por pessoas ao seu redor que percebem sua inteligência, sejam elas as crianças da vila ou um panteão de deuses.

A vivência da cartomante lhe permite ver a estrela no destino de Macabéa.

Nas narrativas, as Mulheres Sábias devem fazer escolhas, encontrar obstáculos e crescer através de suas ações. Elas aprendem a partir de erros e sucessos e suas decisões evoluem conforme absorvem mais experiência e informação. Sua mente afiada é uma força estratégica em seu arco de desenvolvimento, o que torna comum que elas vivam o suficiente para serem reconhecidas como “velhas sábias”.

Essa personagem é encontrada facilmente em estruturas narrativas: adaptabilidade é apenas um de seus superpoderes. Ela pode viver isolada em uma cabana na floresta, a bordo de uma nave espacial, num apartamento no Bronx ou fazendo um bico de cartomante em São Paulo. Ela pode viver à margem da sociedade ou ser o centro das atenções, pode se associar com pássaros ou acumular livros na biblioteca como um dragão terrível, pode ter uma língua afiada e amarga ou ser um poço de gentileza.

Acima de tudo, ela é uma mulher que valoriza a própria independência e trilhou um longo caminho de autoconhecimento, sendo sempre ela mesma a ponto de não se importar se for vista como excêntrica ou peculiar. Ela se destaca tanto por seu espírito livre quanto por sua habilidade fantástica de sentir o verdadeiro potencial e valor naqueles que cruzam seu caminho.

A Mulher Sábia naturalmente retém conhecimento ao ponto de que os outros olham para ela em busca de orientação, estratégia e reafirmação. Essa sabedoria pode parecer sobrenatural ou, de fato, ser sobrenatural, mas grande parte é instintiva ou é derivada de sua experiência de vida. As vezes, ela simplesmente passou por tantas situações que teve a oportunidade de testar suas teorias em batalhas, tornando-as verdades.

A Mulher Sábia nas narrativas

A Mulher Sábia pode se manifesta como a protagonista, a mentora ou um obstáculo que testa o valor do herói ou heroína. Esse arquétipo pode incorporar uma magia espiritual ativa, como Mary Poppins, Glinda, a bruxa boa de O Mágico de Oz, ou a Oráculo de Matrix. Também pode aparecer como uma personagem feminina com habilidades práticas, seja na forma da Dra. Dana Scully em Arquivo X, ou da Dra. Louise Banks em A Chegada.

Esse tropo é uma biblioteca ambulante do conhecimento humano e fala diretamente, sem meias palavras. Por conta disso, algumas vezes é vista como assustadora ou nebulosa devido o seu poder e influência. O arquétipo se baseia na ligação entre luz e sombras e é capaz de pender para um ou outro, tornando-se útil ou perigosa, dependendo do lado que escolha.

O poder da Oráculo parece sobrenatural ou de fato é?

Em um momento a Mulher Sábia se mostra protetora, intuitiva e prudente. Em outro, fria calculista e preconceituosa. Pensemos em Olena Tyrell, de Game of Thrones: a Rainha dos Espinhos, como é conhecida, é uma senhora inofensiva, embora irritadiça à primeira vista. Por trás dessa fachada, sabemos que Olena é uma erudita, altamente versada na política do Trono de Ferro e responsável por puxar as cordas necessárias de arcos cruciais da história.

Em uma narrativa em que esse tropo é idealizado, a Mulher Sábia se torna Galadriel, a rainha élfica de O Senhor dos Anéis. Já se ela for a vilã, é comum encontra-la como uma velha bruxa. Existem ainda, casos em que ela pode ser as duas coisas, como Claire Fraser em Outlander, que é, ao mesmo tempo, respeitada como uma curandeira e desprezada como bruxa, dependendo da qual cultura ou do período histórico.

Independente da representação, a Mulher Sábia é uma peça fundamental para entendermos como as mulheres aparecem nas narrativas. A pós-modernidade ensina que não precisamos esperar que as mulheres se tornem velhas para serem consideradas sábias. Elas o são ao longo de toda a vida. Mas apenas estudando os arquétipos seremos capazes de ajustá-los conforme com a realidade de nosso tempo.

Mais análises sobre arquétipos narrativos aqui:

  • A Mãe (em breve)
  • A Donzela (em breve)
  • A Indomável (em breve)
  • O Guerreiro (em breve)
  • O Rei (em breve)
  • O Mágico (em breve)
  • O Amante. (em breve)
Em pleno sec. XXI e ainda tem coisa que a gente precisa desenhar.

Esse texto foi traduzido a partir dessa matéria da revista Creative Screenwriting, das informações do site TV Trope e editado com observações pessoais do autor.

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Bruno Tavares
Revista Subjetiva

Um publicitário que adora viajar, seja nos livros, nos filmes ou na vida real