O Arquétipo da Mulher Sábia: conhecimento, vivência e espiritualidade
As diferentes representações de um dos arquétipos mais antigos na construção de histórias.
Para construir qualquer narrativa, seja ela visual, literária ou oral, é inevitável que o contador de histórias recorra em algum momento a convenções ou modelos, seja para caracterizar os personagens, para ambientar a trama ou conduzir a história em si. Esses recursos partem do conhecimento comum, compartilhado por um povo, e auxiliam o autor no intrincado processo de desenvolver um enredo.
Os modelos disponíveis são vastos, mas nessa série vamos conversar principalmente sobre aqueles utilizados para a criação de personagens no cinema e na TV, com alguns exemplos da literatura também. Olhando para os personagens masculinos, teremos o Guerreiro, o Rei, o Mágico e o Amante. Já entre as personagens femininas, analisaremos a Sábia, a Mãe, a Donzela e a Indomável. Mas antes, vamos a alguns conceitos rápidos:
Não é tudo a mesma coisa: o Tropo, o Estereótipo e o Clichê
Quando falamos nesses padrões narrativos é comum atribuirmos a eles nomes que, num primeiro momento parecem sinônimos, mas que na verdade possuem significados distintos. O que analisaremos aqui são os Tropos, ou Arquétipos, dispositivos narrativos utilizados pelo autor, que servem como atalhos para descrever situações ou pessoas e são compreendidos, consciente ou inconscientemente, pelos membros de uma cultura.
Já os Estereótipos são as “formas” dadas a esses modelos. Por exemplo, ao pensarmos no arquétipo da Mulher Sábia, a maioria de nós imagina uma velha feiticeira, ou uma mulher madura, que conquistou sua sabedoria ao longo dos anos vividos. Algo semelhante à Oráculo de Matrix ou Minerva McGonagall da saga Harry Potter. Estas representações são estereótipos da Mulher Sábia.
Os Clichês, por sua vez, designam aqueles estereótipos tão comuns que o público reconhece de imediato. Eles criam na história um território confortável para a audiência. Muito demonizados pelo senso comum, a verdade é que não existe nada de errado com um clichê, desde que ele seja bem realizado. O que tende a incomodar o público são os clichês preguiçosos, que aparecem sem justificativas plausíveis. A jornada de um jovem órfão é um clichê que pode ser bem aproveitado, como em Desventuras em Série e A Invenção de Hugo Cabret, ou subutilizado como em A Orfã.
Feitas as devidas apresentações de conceitos, chegou a hora de conhecermos o primeiro tropo dessa série: A Mulher Sábia.
A mais experiente das Irmãs Hécate
A Mulher Sábia, também conhecida como Velha Sábia, é um dos arquétipos mais antigos e duradouros. Nesse tropo, compaixão e bondade se relacionam com magia, mistério e natureza. Em certo sentido, ela é o Espiritual em forma humana. Como já disse Jung, ela incorpora a personalidade “mana” de uma pessoa, o poder espiritual fundamental presente em todos nós.
Na maioria dos arranjos narrativos, a Mulher Sábia integra o trio das Irmãs Hécate, ao lado da Donzela (jovem e ingênua) e da Mãe (centrada e protetora). Elas representam diferentes fases da vida da mulher e também três fases da lua: crescente, cheia e minguante. Se pensarmos em Freud, a Mulher Sábia equivale ao Superego, representando as regras e as convenções sociais.
Ainda que nas histórias nós a conheçamos completamente formada, a Mulher Sábia foi moldada por uma vida dedicada à busca de conhecimento. Geralmente ela não se identifica como sábia, ao contrário, esse título é concedido a ela por pessoas ao seu redor que percebem sua inteligência, sejam elas as crianças da vila ou um panteão de deuses.
Nas narrativas, as Mulheres Sábias devem fazer escolhas, encontrar obstáculos e crescer através de suas ações. Elas aprendem a partir de erros e sucessos e suas decisões evoluem conforme absorvem mais experiência e informação. Sua mente afiada é uma força estratégica em seu arco de desenvolvimento, o que torna comum que elas vivam o suficiente para serem reconhecidas como “velhas sábias”.
Essa personagem é encontrada facilmente em estruturas narrativas: adaptabilidade é apenas um de seus superpoderes. Ela pode viver isolada em uma cabana na floresta, a bordo de uma nave espacial, num apartamento no Bronx ou fazendo um bico de cartomante em São Paulo. Ela pode viver à margem da sociedade ou ser o centro das atenções, pode se associar com pássaros ou acumular livros na biblioteca como um dragão terrível, pode ter uma língua afiada e amarga ou ser um poço de gentileza.
Acima de tudo, ela é uma mulher que valoriza a própria independência e trilhou um longo caminho de autoconhecimento, sendo sempre ela mesma a ponto de não se importar se for vista como excêntrica ou peculiar. Ela se destaca tanto por seu espírito livre quanto por sua habilidade fantástica de sentir o verdadeiro potencial e valor naqueles que cruzam seu caminho.
A Mulher Sábia naturalmente retém conhecimento ao ponto de que os outros olham para ela em busca de orientação, estratégia e reafirmação. Essa sabedoria pode parecer sobrenatural ou, de fato, ser sobrenatural, mas grande parte é instintiva ou é derivada de sua experiência de vida. As vezes, ela simplesmente passou por tantas situações que teve a oportunidade de testar suas teorias em batalhas, tornando-as verdades.
A Mulher Sábia nas narrativas
A Mulher Sábia pode se manifesta como a protagonista, a mentora ou um obstáculo que testa o valor do herói ou heroína. Esse arquétipo pode incorporar uma magia espiritual ativa, como Mary Poppins, Glinda, a bruxa boa de O Mágico de Oz, ou a Oráculo de Matrix. Também pode aparecer como uma personagem feminina com habilidades práticas, seja na forma da Dra. Dana Scully em Arquivo X, ou da Dra. Louise Banks em A Chegada.
Esse tropo é uma biblioteca ambulante do conhecimento humano e fala diretamente, sem meias palavras. Por conta disso, algumas vezes é vista como assustadora ou nebulosa devido o seu poder e influência. O arquétipo se baseia na ligação entre luz e sombras e é capaz de pender para um ou outro, tornando-se útil ou perigosa, dependendo do lado que escolha.
Em um momento a Mulher Sábia se mostra protetora, intuitiva e prudente. Em outro, fria calculista e preconceituosa. Pensemos em Olena Tyrell, de Game of Thrones: a Rainha dos Espinhos, como é conhecida, é uma senhora inofensiva, embora irritadiça à primeira vista. Por trás dessa fachada, sabemos que Olena é uma erudita, altamente versada na política do Trono de Ferro e responsável por puxar as cordas necessárias de arcos cruciais da história.
Em uma narrativa em que esse tropo é idealizado, a Mulher Sábia se torna Galadriel, a rainha élfica de O Senhor dos Anéis. Já se ela for a vilã, é comum encontra-la como uma velha bruxa. Existem ainda, casos em que ela pode ser as duas coisas, como Claire Fraser em Outlander, que é, ao mesmo tempo, respeitada como uma curandeira e desprezada como bruxa, dependendo da qual cultura ou do período histórico.
Independente da representação, a Mulher Sábia é uma peça fundamental para entendermos como as mulheres aparecem nas narrativas. A pós-modernidade ensina que não precisamos esperar que as mulheres se tornem velhas para serem consideradas sábias. Elas o são ao longo de toda a vida. Mas apenas estudando os arquétipos seremos capazes de ajustá-los conforme com a realidade de nosso tempo.
Mais análises sobre arquétipos narrativos aqui:
- A Mãe (em breve)
- A Donzela (em breve)
- A Indomável (em breve)
- O Guerreiro (em breve)
- O Rei (em breve)
- O Mágico (em breve)
- O Amante. (em breve)
Esse texto foi traduzido a partir dessa matéria da revista Creative Screenwriting, das informações do site TV Trope e editado com observações pessoais do autor.