Foto: Leandro Marçal

A necessária (e hilária) verborragia

Leandro Marçal
Revista Subjetiva

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Quando dispensei os amendoins, sucos, cafés e Wi-Fi da sala de imprensa da 25ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo, rumo ao Salão de Ideias para o bate-papo “Feminino e masculino”, estava prestes a me deparar com quase duas horas de muita verborragia, risos e poucos clichês.

Passei em frente à Arena Cultural BIC e vi uma multidão acompanhando o filósofo Mário Sérgio Cortella dissertar sobre a graça nas pessoas que o imitam, com seu jeito de falar arrastando as palavras e descrevendo a raiz de cada uma delas.

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Lembrei meus grupos de WhatsApp, nos quais ninguém aderiu à minha ideia de mandar áudios com tentativas de copiar sua voz. Pensaria em Cortella dali a alguns minutos, quando Tati Bernardi imitou-o, arrancando risos da plateia que lotava o local, com uma parede verde atrás das convidadas, cheia de frases inspiradoras para leitores e autores.

E quando conjuguei o verbo lotar no pretérito imperfeito não foi mero capricho para embelezar o texto. Depois de alguma demora, muita gente entrou e acompanhou as três convidadas da conversa em pé, encostando-se uns aos outros. Sentado à última cadeira, perguntei a uma elegante moça ao meu lado se seria exagero dizer que 80% do público ali presente era feminino. Mais gente entrou e a moça elegante me sugeriu aumentar de 80 para 90%, tornaria meu relato mais preciso.

Os aplausos esquentaram o ambiente entre o frio e o gelado na hora em que elas se posicionaram à nossa frente. Tati ficou no centro da mesa e depois de um tempo pediu emprestado um casaco. A cronista do jornal Folha de São Paulo, roteirista do Grupo Globo e autora do recém-lançado Homem-objeto e outras formas de ser mulher, além de Depois a louca sou eu, A mulher que não prestava e mais uma série de livros arrancava risos com tiradas cirúrgicas.

À sua esquerda, Fernanda Young, roteirista de uma dezena de séries de sucesso e autora de Pós-F: Para além do masculino e do feminino — que autografaria depois do bate-papo — , A mão de vênus, Aritmética: romance e mais uma penca de obras, não tinha vergonha de falar o que bem entendesse e se abrir de um jeito íntimo ao público presente. À direita de Tati, Maria Ribeiro, atriz de filmes e novelas de sucesso, autora de Trinta e Oito e Meio e Tudo o que eu sempre quis dizer, mas só consegui escrevendo trazia uma sinceridade que não a constrangeu de avisar que precisava fazer xixi, bem no meio da conversa.

A mediação ficou por conta de Beatriz Alvez e Camila Cabete, donas do As Desqualificadas, um podcast de conversas divertidas, sem filtro e sem vergonha, como se autointitulam. Sentadas às pontas do palco, não escondiam a admiração pelas autoras ali presentes. Aliás, nem tão às pontas assim: no canto esquerdo delas, um rapaz fazia a tradução para a Linguagem Brasileira de Sinais, o que gerou risos quando elas chamaram atenção pela forma como ele gesticulava em momentos difíceis de se transcrever para qualquer idioma do mundo. Como quando Fernanda e Tati faziam referências a Fábio Assunção, namorado de Maria, ou quando trataram de falar de tratamentos hormonais. O humor marcaria presença, estava claro.

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Mesmo com os risos, o papo ficou longe de ser raso. Fernanda, por exemplo, tratou de se identificar como alguém distante de um objeto de ideal engessado ao tratar do feminismo. Ressaltando sua importância, Maria criticou os que lucram com todo tipo de ativismo. Todas disseram se incomodar quando o idealismo vira tendência, já que tendências e modas passam.

Ao tratar de literatura em geral, literatura feita por homens ou por mulheres, literatura feita para homens ou para mulheres, os bons argumentos geraram um debate rico.

– Me irrita quando falam de literatura de mulher, tendo ali implícito uns textos “bobinhos”. — Tati não usou aqui o termo “água com açúcar”, mas acho que ele se aplica bem a este contexto — Sou lida por homens e mulheres na Folha e já fui xingada por ambos como “rodada” e já me mandaram lavar louça pelo que escrevi. Mas, eu acho que que a literatura FEITA por mulheres pode ser mais característica, sim.

Fernanda discordou do último ponto.

– Acho que o homem tem uma forma de funcionar mais cartesiana que a mulher. Mas, não acredito que a minha literatura represente necessariamente a minha personalidade como mulher. Cada narrador, cada personagem, pode ser bem escrito, de acordo com a forma, tanto por homens quanto por mulheres. Não vejo essa diferença, dá para escrever de todos os pontos de vista.

Maria foi mais sucinta.

– Não tenho preocupação em para quem vou escrever.

Foi para uma jovem, que lançou sua primeira publicação aos 16 anos, que elas mais falaram sobre agruras da literatura. Fernanda, que se definiu como uma grande escritora, acredita que ter sucesso em outras áreas a faz ser, de certa forma, invejada por parte do meio literário e por outros que a criticam, como os “coronéis da cultura” de um país que encaretou demais nos últimos anos. Maria tratou de ressaltar que chegou a ser tocada até mesmo por um e outro livro de autoajuda e não vê problema algum nisso. Tati tratou de expressar seu desgosto pelas tramas que passam oito páginas descrevendo uma árvore. Em suma, há literatura para todo mundo, para todos os gostos.

Curioso perceber que, minutos após Fernanda assumir ter sentido uma libertação após parar de tingir o cabelo, eu levantei para fazer minha pergunta. Completamente careca há uns bons anos, sei bem o que é desapegar das amarras capilares. Era o momento em que Maria passou uns dez minutos a caminho do banheiro. Pela demora, foi fazer cocô, acusou Tati.

Na minha intervenção, Fernanda detalhou o sofrimento físico e psicológico no desenvolvimento de cada um de seus romances, que sempre começam com muita alegria e post-its, mas terminam em um processo doloroso, desgastante. Tati comentou sobre comentários de seus textos na internet e a irritação pelas cobranças de leitores sobre uma necessidade de militar por todo o tempo. Riu ao tratar de suas frases de sucesso na internet, 90% nunca ditas por ela. Maria chegou, concordou com tudo, arrancou risos novamente.

Entre as diversas porradas de uma furiosa e carismática Fernanda em todo tipo de fundamentalismo, comentários de uma Tati semelhantes a gags de sitcom e uma Maria com a espontaneidade comentada por três ou quatro pessoas sentadas perto de mim, foram muitos os temas ali falados. Feminismo, neuroses, ansiolíticos e antidepressivos, maternidade, trabalho, boletos, saídas tumultuadas do programa Saia Justa e outros assuntos. Ficou a impressão da necessidade cada vez maior de se dialogar.

Elas sabem fazê-lo muito bem. Seja com homens, mulheres. Seja sobre homens, mulheres. E a verborragia ali presente, num papo tão fragmentado e brilhante quanto as mentes das convidadas, deu a sensação de que texto algum descreveria tão fielmente o calor daquela sala verde, cujo painel atrás das três estampava a seguinte frase, entre outras: “Quem lê um livro, mal sabe como ele foi feito. Cada palavra puxa a essência do autor, cada ideia a sua vivência, cada conto a sua dor. A leitura de cada página nada mais é do que uma conversa sincera com o autor”.

Faz sentido.

Foto: Leandro Marçal

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Leandro Marçal
Revista Subjetiva

Um escritor careca e ansioso. Autor de “De Letra: o futebol é só um detalhe” e “No caminho do nada”. Cronista no Tirei da Gaveta (www.tireidagaveta.com.br).