A poesia de Ferreira Gullar

Com Antônio Carlos Secchin, Geraldo Carneiro e Ana Paula Pedro.

Revista Subjetiva
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5 min readSep 2, 2017

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A principal proposta da mesa é homenagear o grande poeta brasileira Ferreira Gullar, que faleceu em dezembro de 2016. Todos que estava ali presentes para homenageá-lo tiveram alguma relação profissional ou pessoal.

Antônio Carlos Secchin é poeta, ensaísta e crítico literário brasileiro, professor de Literatura Brasileira da UFRJ. Segundo ele, Gullar era apaixonado pelo Rio, mesmo tendo nascido no Maranhão, mostra parte da obra de Gullar que enaltece o Rio e brinca que ele poderia ser o “menino do rio” da música de Caetano Veloso ou o “garoto de Ipanema”, pois era por lá que o mesmo passeava conversando em um bar convencional do bairro.

acervo pessoal

Secchin conta como Gullar transformou sua vida em poesia, principalmente quando esteve na prisão ou exilado por conta da Ditadura Militar que caçou muitos artistas e intelectuais.

O prisioneiro

Ouço as árvores

lá fora

sob as nuvens

Ouço vozes

risos

uma porte que bate

É de tarde

(com seus claros barulhos)

como há vinte anos em São Luís

como há vinte dias em Ipanema

Como amanhã

um homem livre em sua casa.

(Ferreira Gullar, 1969)

acervo pessoal

Ana Paula Pedro é atriz, trabalhou em novelas do horário nobre da emissora de Roberto Marinho, gravou documentários onde Gullar aparecia e, na mesa, declamou conhecidas poesias do poeta brasileiro.

O trabalho das nuvens

Esta varanda fica
à margem
da tarde. Onde nuvens trabalham

A cadeira não é tão seca
e lúcida, como
o coração.
Só à margem da tarde
é que se conhece
a tarde: que são as
folhas de verde e vento, e
o cacarejar da galinha e as
casas sob um céu: isso, diante
de olhos.

e os frutos?
e também os
frutos. Cujo crescer altera
a verdade e a cor
dos céus. Sim, os frutos
que não comeremos, também
fazem a tarde
(a vossa
tarde, de que estou à margem).

Há, porém, a tarde
do fruto. Essa não roubaremos:
tarde
em que ele se propõe a glória de
não mais ser fruto, sendo-o
mais: de esplender, não como astro, mas
como fruto que esplende.

E a tarde futura onde ele
arderá como um facho
efêmero!

Em verdade, é desconcertante para
os homens o
trabalho das nuvens.
Elas não trabalham
acima das cidades: quando
há nuvens não há
cidades: as nuvens ignoram
se deslizam por sobre
nossa cabeça: nós é que sabemos que
deslizamos sob elas: as
nuvens cintilam, mas não é para
o coração dos homens.

A tarde é
as folhas esperarem amarelecer
e nós o observarmos.

E o mais é o pássaro branco que
voa — e que só porque voa e o vemos,
voa para vermos. O pássaro que é
branco
não porque ele o queira nem
porque o necessitemos:
o pássaro que é branco
porque é branco.

Que te resta, pois, senão
aceitar?
Por ti e pelo
pássaro pássaro.

(Ferreira Gullar, 1930)

Cantada

Você é mais bonita que uma bola prateada
de papel de cigarro
Você é mais bonita que uma poça dágua
límpida
num lugar escondido
Você é mais bonita que uma zebra
que um filhote de onça
que um Boeing 707 em pleno ar
Você é mais bonita que um jardim florido
em frente ao mar em Ipanema
Você é mais bonita que uma refinaria da Petrobrás
de noite
mais bonita que Ursula Andress
que o Palácio da Alvorada
mais bonita que a alvorada
que o mar azul-safira
da República Dominicana

Olha,
você é tão bonita quanto o Rio de Janeiro
em maio
e quase tão bonita
quanto a Revolução Cubana

(Ferreira Gullar, 1975)

Geraldo Carneiro é poeta, dramaturgo, letrista e roteirista brasileiro. Foi amigo pessoal de Gullar e em sua fala reiterou o compromisso do poeta com a política no século passado. Segundo ele, durante sua vida, o poeta sempre alinhou a política com a poesia. Foi filiado ao PCB e, quando exilado, ficou na União Soviética, volta do seu exílio e começa a ministrar na faculdade que mais tarde se tornaria a antiga Universidade da Cidade no Rio de Janeiro. Além de poeta, ambos [Carneiro e Gullar] eram roteiristas e foi isso que os aproximou. Com Dias Gomes, o poeta também escreveu poetas e mini séries, como também roteirizou séries como ‘Carga Pesada’.

acervo pessoal

Gullar se torna um personagem tão importante na política brasileira que, segundo Geraldo, a cada duas páginas do livro 68: O ano que não acabou é possível notar o poeta em uma, tamanha sua presença em eventos da juventude da época.

Geraldo, em sua fala, diz que não há como enxergar a poesia brasileira sem Gullar, diz que até sua intolerância era admirável. Para finalizar, os participantes apresentaram um vídeo de Gullar recitando sua mais famosa poesia:

Traduzir-se

Uma parte de mim
é todo mundo;
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera;
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta;
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente;
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem;
outra parte,
linguagem.

Traduzir-se uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?

(Ferreira Gullar, 1980)

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