A QUEM INTERESSA A NÃO CONSCIÊNCIA NEGRA?

Nathália Coelho
Revista Subjetiva
Published in
2 min readNov 20, 2020

Um poema-trajetória de reconhecimento (tardio) de identidade

Notícia para o dia da Consciência Negra.

Quando a repórter
branca e loira
ameaçou
a estagiária da emissora
no rádio, dizendo:
"Me respeita pois você não sabe se vai viver até se formar".
Ela já sabia que gente preta morria antes do ciclo da vida acabar.
A estagiária não entendia nem que era preta.

Quando o chefe de redação
homem branco
fez troça com
a produtora
e o irmão dela
dançarino de hip hop
Black Power na cabeça
Dizendo:
"Me indica tudo da agenda Cultural,
menos aquilo que você e seu irmão frequenta"
Ele não a via igual,
mas ela chorava, revoltada porque não entendia a implicação.
O chefe de redação sabia.
Ela não.

Quando a menina
olhava, olhava
e não se via
nos traços finos da mãe
recorria logo ao outro lado pra se autoexplicar:
"Olha, eu sou assim,
Mas eu vim dela mesmo!
É que eu pareço mais
a família do meu pai..."
A mãe intuía
O pai entendia,
mas o avô
(Ôh se sabia!)
ensinou ele, os treze
a apagar para sobreviver.
A quem interessa recuar pra se defender?

Quando o pai da amiga
homem branco, antigo
Disse:
"Mas olha que a mãe é mais bonita que a filha!"
Ele já sabia,
A filha, tampouco a amiga, não.

Aos 8, o coleguinha:
"que menina moreninha!"
Aos 10, os parentes:
"você é cor de jambo!"
Aos 12, na escola de freiras:
"você é parda!"
Igual o papel?
Mas ela sempre foi, pros pai, a "preta deles"
Só não pra si mesma.

Quando a adolescente
escreveu na agenda
a maior notícia possível:
"Meu cabelo está ficando liso!"
(De progressiva!)
Ela ainda não se via
sem os olhos da necessidade da sociedade.

Quando o namorado
homem branco
disse para a mulher virgem de 28 anos:
"Seu estilo na cama é de ninfa."
Ele já sabia dela objeto,
Ela só queria afeto, por isso sorriu.

Só aos 30,
quando a professora amiga falou:
"Olha, você tem direito e pode se autodeclarar pra cota"
"Tenho? Posso?"
Silêncio.

Aí que se deu conta
Do limbo,
Dos entremeios
Do liquid de paper da própria história
Da agonia de se ver e não se enxergar...

E aí agora viu
o que não via.
Entendeu
o que não entendia,
Achou sua íntegra,
seu lugar,
O resgate da existência.
Compreendeu enfim
O quê e como fazer
pra viver - internamente.
Depois lutar por ela e pelos seus que sofreram e sofrem e morrem, muito mais que ela,
só pela cor da pele.

Leia o jornal e responda:
A quem interessa negar e burlar a consciência negra? (Nathália Coelho)

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Nathália Coelho
Revista Subjetiva

Jornalista. Professora. Escritora. Dra em Literatura (UnB). Um monte de coisa, enfim, um tanto de nada… https://www.instagram.com/@_nathaliacoelho