A Redoma de Vidro de Sylvia Plath: A possibilidade de se reescrever

Larissa Goya Pierry
Revista Subjetiva
Published in
7 min readJun 12, 2018
Editora Biblioteca Azul, 280 p., 2014.

“Respirei fundo e ouvi a batida presunçosa do meu coração

Eu sou, eu sou, eu sou.”

Relendo esse livro após alguns anos, tenho a sensação de que um livro nunca é o mesmo quando o lemos em épocas diferentes de nossas vidas, pois o leitor também não é mais o mesmo, assim como aquela máxima de que ninguém entra no mesmo rio uma segunda vez. Há livros que leremos apenas uma vez, mas, em contrapartida, há aquelas obras que sempre iremos revisitar ao longo de nossa vida, porque, de alguma forma, nos dizem algo muito singular, e, a cada releitura, nos enriquecem, nos interrogam. Para mim, esse livro da Sylvia Plath é um dos casos.

“A Redoma de Vidro” narra, em primeira pessoa, aproximadamente, um ano na vida de sua protagonista, Esther Greenwood, uma garota de dezenove anos de idade, que sempre viveu uma vida modesta, com sua mãe, em um subúrbio de Boston, Massachusetts. Ela obtém êxito na universidade e se interessa em seguir carreira como escritora, conseguindo um estágio em uma revista feminina na cidade de Nova York, com tudo pago. A partir dessa viagem, que já possui data marcada para acabar, ela precisa decidir o que fazer com sua vida quando voltar para sua realidade anterior. Vários acontecimentos e encontros com personagens fazem com que ela se questione sobre o seu futuro, e a narrativa do livro, extremamente intimista, se desenrola a partir dessas questões internas.

É muito difícil de definir Esther, e é por isso que a leitura se mostra enriquecedora, pois temos diante de nós, uma personagem extremamente complexa e singular, nunca previsível. Em alguns momentos, Esther parece resignada em seguir o que a maioria das pessoas acredita ser o mais adequado para uma mulher americana na década de 1960: uma vida suburbana, casamento e filhos; em outros momentos, ela deseja seguir uma carreira acadêmica, possivelmente como escritora, mas teme não ser boa o suficiente para alcançar isso, teme o que outras pessoas vão pensar dela, teme acabar sozinha. Dentro desse estado conflituoso e neurótico, não é difícil de compreender o quanto ela se sente deslocada de seu meio e de suas colegas, bem como dos encontros amorosos que têm: nenhuma dessas pessoas parece entender suas questões, muito menos refletir sobre sua própria vida.

Após o fim do estágio, estando de férias da universidade, precisa passar o verão na casa de sua mãe, até que as aulas recomecem. Ela passa a se sentir extremamente desconfortável naquele ambiente suburbano: a própria vista da vizinha da casa da esquina, uma resplandecente mãe de sete, lhe provoca angústia. Para uma garota que conseguiu experimentar um certo grau de autonomia e independência, torna-se insuportável a ideia de se tornar aquilo do qual tenta escapar, um destino cujas únicas possibilidades incluem ser esposa e/ou ser mãe. Esther passa a sofrer de bloqueio criativo e parece não conseguir se concentrar em nada, falhando em escrever uma página de um possível romance, pois percebe que tem muito pouca experiência de vida, o que nos faz pensar em um mecanismo de auto sabotagem, afinal, se esse era o destino da maioria das mulheres, como lutar contra isso sob tanta pressão interna?

Sua mãe percebe que ela está transtornada e a leva para tratamento psiquiátrico, mas, após uma absurda sessão de tratamento de choque e uma tentativa de suicídio frustrada, o médico recomenda que ela passe “um tempo” numa clínica psiquiátrica. Mais um caso no qual a escuta teria sido extremamente terapêutica, sem se precisar recorrer a métodos bruscos e desorganizadores. Esther nunca é realmente enquadrada em nenhum tipo de diagnóstico — apesar de muitas pessoas inferirem que ela está em um episódio depressivo — não há nem a tentativa de escutá-la, nesse caso, se descobriria que o seu sofrimento não estava apenas ligado a condições internas suas — a “redoma de vidro” que a encobria — mas, principalmente, a um meio extremamente indiferente a qualquer de suas dúvidas e medos.

É interessante o quanto Plath é devota a, literalmente, desaguar todas as subjetividades de Esther para o leitor, sem se preocupar se vai fazer sentido ou se vai parecer fiel a algum diagnóstico de transtorno mental, no caso, a depressão. Aliás, acredito que seja um mérito do livro, trazer sobre experiências dentro de um manicômio, sobre a sensação de se estar dentro de uma “redoma de vidro”, em uma época tão cheia de preconceitos quanto a década de 1960, particularmente na sociedade americana. Além disso, traz várias questões de gênero, ao relacionar o adoecimento de Esther (ou será produção de saúde, nesse caso?) a pressões sociais extremas sobre o papel que a mulher deve ocupar.

É claro, o conceito de “obra revolucionária” cabe de forma limitada aqui, pois, trata-se de uma personagem branca e de classe média da Nova Inglaterra, em uma sociedade ainda extremamente racista e com pouca tolerância a grandes mudanças ou pensamentos alternativos. Por outro lado, esta é a época da “Mística Feminina” de Betty Friedan, da ascensão da segunda onda do Feminismo, e de tantos outros movimentos sociais que hoje ocupam lugares de fala importantes, o que somente foi possível pois pessoas lutaram para que isso ocorresse, há cinquenta anos atrás. Então, desde a década de 1960, avanços enormes ocorreram, mas, olhar para o passado é sempre um lembrete consciente do quanto ainda precisamos trabalhar para desconstruirmos certas ideias estereotipadas e preconceituosas, colocando outras, mais tolerantes e acolhedoras, no lugar.

O que é a “redoma de vidro”? Pode-se pensar, em um nível subjetivo, que a redoma, tanto descrita por Esther durante o livro, seja uma barreira que a impede de realmente estar presente nas situações que estão acontecendo em sua vida, por estar sempre preocupada com o que virá depois: deve se manter pura como foi ensinada? ou se lançar ao desconhecido? à vida noturna? aos homens que a cobiçam? Esse conflito é tão bem representado pela sua amiga Doreen, a quem a protagonista contempla com fascínio e terror. Em relação à dimensão social, pode-se ir mais fundo, será que Esther escolheu se sentir assim? O fato de que esse conflito interno constante seja somente seu não exclui o fato de que seja algo provocado socialmente, pela própria condição de ser uma mulher naquele contexto: pessoas de quem são requisitadas tantas coisas, mas dadas poucas em troca.

Este é um caso em que a realidade imita a arte, e vice-versa, pois, o infeliz fato de que Sylvia Plath cometeu suicídio logo após o lançamento desse livro nos diz várias coisas acerca da personagem. É possível observar fortes contornos autobiográficos na construção de Esther Greenwood, podendo se pensar o quanto a autora estava precisando escrever sobre essa sensação de não se sentir pertencente a lugar algum, provavelmente a razão pela qual publicou o livro sob o pseudônimo de “Victoria Lucas”. Este foi a única obra em prosa publicado por Plath, cuja obra é composta, na maior parte, por coletâneas de poemas publicados postumamente, incluindo seus diários pessoais, mas pode-se pensar que, “A Redoma de Vidro” é, de certa forma, baseada em sua vida.

O que acho interessante é perceber que ela deixou em aberto o final de Esther nas últimas páginas de “A Redoma de Vidro”, como se não tivesse ainda decidido qual final dar a ela, salvação ou morte? Ela delegou essa tarefa de imaginação ao leitor, por isso, comecei a resenha dizendo que os sentidos que atribuímos a um livro dependem muito da nossa própria subjetividade. Pode ser que alguém leia o último capítulo e imagine Esther voltando para a faculdade e se tornando uma escritora famosa, outros já podem imaginar que ela tem outra crise e recorre novamente ao suicídio, entre tantos outros infinitos desfechos. Curiosamente, eu tive a sensação de que ela estava dando um passo para fora da “redoma de vidro”, e que, apesar de nunca mais ser a mesma após uma internação em uma clínica psiquiátrica aos 19–20 anos de idade, ela, lentamente, vai aprender outras formas de ser-estar no mundo.

Infelizmente, apesar das similaridades com a protagonista, a história de Sylvia Plath, como já se sabe, está longe de ser esperançosa. Ela tirou a própria vida em 1963, logo após o lançamento de “A Redoma de Vidro”. Recentemente, foram oficialmente publicados os seus diários, os quais mantinha desde os onze anos de idade, com exceção dos três últimos anos de sua vida, e o motivo é porque o seu ex-marido, Ted Hughes, os queimou. Mais tarde, foi descoberto que os escritos destruídos revelavam que, dois dias antes de sofrer um aborto, Sylvia havia passado por um episódio de violência doméstica, entre outras questões que se referem ao comportamento de seu marido na época, incluindo infidelidades e outros tipos de agressões.

Enfim, ler esse livro é uma experiência tanto inspiradora, pois é uma obra de arte marcante e única, quanto aterrorizante, pois não apenas Esther Greenwood esteve presa na redoma de vidro, Sylvia Plath também esteve lá, assim como a maioria das mulheres, que se vêem obrigadas a escolher entre uma coisa ou outra, vida familiar ou carreira profissional. Mas, apesar da última pergunta do livro, feita por Buddy Willard, ser pesada (“fico me perguntando com quem você vai se casar agora, Esther, depois que passou por aqui…”), não terminemos a leitura em desolação, afinal, Sylvia escolheu nos deixar essa história antes de partir, e este final está sempre passível de ser reescrito.

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Larissa Goya Pierry
Revista Subjetiva

Psicóloga. Feminista. Escrevo umas coisas por aí. Apaixonada por Cinema, Literatura, Música e pelas belas estranhezas da vida.