A rotina que ora nos abunda

Gabriel Piazentin
Revista Subjetiva
Published in
4 min readJun 23, 2020
Imagem de こうこう きちでん por Pixabay.

Sim, este é mais um texto sobre a quarentena. Afinal, tem alguma outra coisa acontecendo no mundo? Ou sequer ainda existe quarentena, talvez eu que seja teimoso demais, ou privilegiado, por conseguir ficar em casa na medida do possível. Mais teimoso, também, por usar a máscara na rua de maneira correta, quando tenho que sair, cobrindo do nariz ao queixo.

Como você deve ter percebido, os dias parecem todos iguais, o que causa — pelo menos em mim — uma aparente dissociação do tempo cronológico. Ainda mais com esse vai e vem de feriado adiantado. Já estamos quase na metade do ano. 2020 parece enevoado, algo que até está na nossa frente mas não é perceptível ao certo. É um efeito de ilusão.

Pensei aqui: meus dias consistem em ir da cama pro computador e do computador pra cama. Quando muito, faço turismo na cozinha e no banheiro (sim, ainda tomo banho todos os dias). Tem vezes que eu mal acordo, faço qualquer coisa e bum, anoiteceu, o dia acabou e fica o amargo da sensação de não ter feito nada.

O que não é verdade. A gente quarentenado faz muita coisa. Mas como esse monte de atividade é realizada em casa, a sensação é de que não é nada. Vi em algum lugar dizerem que na real não existe home office. Faz sentido. No final, a gente lê, escreve, trabalha, vê aula, dá aula, pinta, desenha, grava voz e vídeo, edita, aprende, joga, faz artigo (e você aí pode fazer tantas outras que eu não citei)… tudo isso sem sequer sair do quarto.

Daí que, imagino, essa inundação de atividades num espaço físico que é sempre o mesmo pode ser a causa desse sentimento ruim de não fazer nada, além do dissabor de não concluir vários desses trabalhos iniciados e se satisfazer com poucas dessas atuações. É tipo um escapismo pela via da hiperatividade (no sentido de pluralidade de efeitos de realização, uma metáfora ao transtorno).

Ah, sim, além de se cuidar com a pandemia. Basicamente: NÃO MORRER.

E torcer para que alguém do Executivo federal tenha um mínimo de bom senso.

Mas aí é querer demais.

Adicione mais esse item às atividades da quarentena: sentir-se mal por não fazer tanto quanto deveria. Ou o quanto podia. Ou o que de fato precisava fazer. Afinal, vigiar-se nesse estado constante de preocupação não deixa de ser, também, uma das coisas a serem feitas durante a quarentena, e que, convenhamos, demanda grande desgaste emocional. Pior, são elementos que não estão ao nosso alcance, não é possível agir efetivamente sobre eles, o que induz mais ainda esse sentimento de ser tão inferior e impotente diante do mundo.

Puxa, nesse meio tempo peguei uma agenda física, de 2020, que comprei ainda no final do ano passado. Como a gente era otimista, né? O marcador de página encontrava-se perdido em algum lugar no final de fevereiro. De lá para cá, estamos presos nesse mês de março transfigurado em Caverna do Dragão.

O que me conforta é que todo mundo com quem eu converso parece estar travado igual na escrita da dissertação do mestrado (tomara que este texto não chegue à minha orientadora, MAS CASO CHEGUE, quem escreve aqui não sou eu, é meu eu-lírico, professora!). E eu aqui pensando num projeto de doutorado. Será que tem processo seletivo esse ano? Será que eu sequer defendo a dissertação esse ano?

Taí outra mania de minha parte: atropelar a ordem dos eventos. Quantos projetos mal iniciados deixei pela metade… Penso em outras pessoas que também enfrentam ansiedade e passam por momentos assim: fazer de tudo parecendo que não é nada e, pior, que é insuficiente. Ou ainda, quantos casos que ouvi de ansiosos que até estavam estáveis, mas aí veio a pandemia e os ataques de pânico retornaram. Santa sertralina, nos dai hoje um teco de serotonina!

Sempre seguindo o ritmo: da cama pro PC, do PC pra cama.

Descobri um software para fazer música e tá cheio de tutorial no YouTube, são horas da minha vida que posso gastar, ou investir, aprendendo uma coisa nova. Eu sempre quis brincar com produção musical. Quando percebo, o dia acabou.

Da cama pro PC, do PC pra cama.

Tenho me esforçado para pensar o que escrever nesta Revista, é mais uma forma de se sentir produtivo, parte de uma comunidade, de falar e ser lido. Ainda assim, segue a ladainha:

Da cama pro PC, do PC pra cama.

Então, eu tenho um mundo de leitura e escrita à disposição, de material teórico a ficção, textos que deixei inacabados, artigos acadêmicos, histórias em que meus personagens certamente se cansaram e desistiram de querer saber o que acontece com eles.

Da cama pro PC, do PC pra cama.

Eu nunca nunca fui adepto à dança. O que é engraçado porque outra sensação é a de que só me resta um novo hobby, que é sentar. Tô de parabéns.

Mesmo fora desse período louco nosso, a gente senta toda hora: em casa, no ônibus, no metrô, no trabalho, na sala de aula, no cinema (#rip). Acho que já estávamos cansados antes mesmo disso tudo que tá aí, mas agora não resta muito mais o que fazer a não ser ficar mais exausto ainda. Sentadinho, com o mundo girando ao redor, tão depressa mesmo sem sair do lugar, o que gera essa tontura nas pessoas mais sensíveis.

Seguimos, enfim, um dia de cada vez.

Precisamente há 90 e poucos dias já.

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