A saga da palavra perdida

Ana C. Moura
Revista Subjetiva
Published in
5 min readJun 24, 2020
Foto extraída do Instagram da artista Rhaissa Bittar, aqui.

“A maior ambição da canção é ser silêncio”.
Em A Maior Ambição, música de Juliano Holanda e Zé Manoel, interpretada por Rhaissa Bittar.

“Ainda há música
no intervalo entre as canções”.

Em O Livro das Semelhanças (2015), de Ana Martins Marques.

Havia um mês ou mais, já perdi as contas, que a palavra me fazia greve de fome. Me fez um motim e se acumulou, em gerúndio, feito represa, como que buscando uma força amalgamadora no peito para um dia sair. Saíram hoje, depois de um longo hiato, no dia que escrevo este texto, 15 de junho de 2020 (provavelmente não o dia em que ele vai encontrar você aí do outro-mesmo lado).

Não é como se eu não tivesse escrito palavra alguma nesse meio-tempo inteiro, porém. Escrevi, é verdade, algumas palavras sob demanda, para projetos, trabalhos, que vez em quando rareiam, estão rareando mais, mas vá lá. Escrevi também palavras pontuais, oceanos de letras para alguns amigos que desaniversariaram esses dias, um jeito de desaguar um abraço para ver se transborda de lá (algo sobre o qual falei mais um pouco em outro momento), ainda mais agora que o encontro do corpo está restrito — ou deveria, dado o contexto.

Quer dizer, as palavras, de algum jeito, estão sempre se movimentando por aqui. Na escrita ou mesmo na leitura — que tem sido um desafio até para a voracidade com que costuma me atravessar a letra alheia. É tudo um ensaio ou quase. Mas, quando digo que a palavra está, estava, esteve em suspensão, isso significa que foi a palavra de bailar em outras ondas que deu um tempo de mim. Não é a palavra do texto para aquele trabalho, ou do livro que preciso ler para o TCC, ou daquele parágrafo do projeto naquela revista, nada do tipo. É a palavra da poesia, aquela que deveria alimentar com poemas aquele longo livro em construção (talvez ele fique sempre tijolo), que deveria deixar de ser mera palavra solta, sopa de letrinhas no caderninho, no bloco de notas, no quadro branco que tenho no quarto.

Quando a palavra some, em geral são períodos de profundo recolhimento por aqui, de certo vazio na boca do estômago. Os dias são meio estranhos, de uma estranheza aumentada, que vai se tornando mais conforme o tempo se delineia e passa (o que fica?). Mas, ao mesmo tempo, é também um momento de lembrete da importância das pausas. Um lembrete que é também levante contra as injustiças do mundo, em tantos sentidos, acentuadas pelo agora. Um lembrete de que falta acesso de um monte de gente às pausas, a alguma pausa, porque pausa deveria ser palavra de ordem e direito irrestrito, mas por vezes é privilégio. Um lembrete de que nem tudo, nem sempre tudo precisa ser pauta.

E, então, tudo bem às vezes dar tempo à palavra, para ela descansar. Também é preciso. Afinal, assim como eu e talvez como você, a palavra anda exausta. É um pouco desse peso dos absurdos todos do contexto. É tanto, é tudo. Inominável, abominável, impossível de acompanhar.

A palavra vez em quando desaparece um tempo, se desliga daqui, tira férias de mim sendo a única que consegue viajar no momento. Normalmente, ela volta, intencionalmente intensa, voraz, veloz. Não avisa, só bate à porta, fica martelando na cabeça, demandando urgente e imediata atenção. A palavra pode ser tubarão, tempestade, turbilhão e ainda ter memória curta quando age como se nunca tivesse tomado três garrafadas de chá de sumiço. Em geral ela volta. E também em geral eu fico cabreira com ela, com medo de ela não voltar mais nunca, fazer as malas de vez, largar só as roupas e os utensílios que não quer mais e não olhar para trás. Mas em geral ela volta.

Pode ser que, quando este texto encontrar você aí do outro-mesmo lado, a palavra tenha de novo se esquecido de mim, de propósito, nesse breve(?) abandono para fazer saudade, como se saudade já não fosse um dos sentimentos que dita os nossos tempos. Não se trata de romantizar a palavra ou o processo que a faz. No processo de trazê-la a lume, há muita água salgada — e, para pegar emprestado os dizeres da Cris Lisbôa, da Go, Writers, água salgada é “suor, lágrima e mar”, o que faz todo sentido. Por vezes, quem escreve é um mediador, alguém quase oráculo dos caprichos da palavra, um ser que “trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua” (menos Bilac e seu monte Parnaso, mais biloca brincada na rua).

É que a palavra às vezes é assim: pêndulo, gangorra. Ao menos na minha experiência com ela, quando está na fase arredia, escorregadia, fugaz, a gente pode até tentar, sim, fazê-la caber nos nossos prazos, termos e condições, na nossa disciplina, no nosso exercício diário de marejá-las pelas mãos. A gente pode até forçar a todo custo, dar murro em ponto de faca, mas é imensa a chance de sangrar e não sair nada mais que umas marolinhas.

A palavra por vezes oscila demais, é cíclica mas de fases menos regulares que a Lua. Pratica ciclismo para aprender a pedalar e a se deslocar para longe. Comigo, sempre produz algum deslocamento. E, por mais que esses momentos sabáticos da palavra me deixem tensa, sempre entoo, feito reza, feito prece, esta canção e mais exatamente o trecho que segue, para convidá-la ao retorno:

“Venha meio triste, venha atrás de um trago, venha gotejando luz.
Venha Agatha Christie, venha Saramago, venha de Chicago Bulls.
Venha de vestido longo, venha logo, venha lá do lago sul.
Venha de Gagarin, me mostrar os ares, lá do céu a Terra é sempre azul.
Venha garantida, venha caprichosa, venha Verde-Rosa ou Beija-Flor.
Venha precavida, venha perdulária, venha perdurar o quanto for.
Venha incendiária, venha ensandecida, pega a vida e venha, meu amor.”

Costuma funcionar, uma hora funciona, até hoje funcionou, pelo menos. Graças, muchas gracias. Que siga assim, porque a escrita do reencontro costuma ser bem gostosa, ainda que um tanto afobada.

Gostou do texto? Deixe os seus aplausos — eles vão de 1 a 50 — e fique de olho nas nossas redes sociais para maiores informações: Instagram e Twitter ou mande um e-mail para rsubjetiva@gmail.com.

--

--

Ana C. Moura
Revista Subjetiva

• Poeta • Revisora • Tradutora • Editora de Projetos da Fazia Poesia • A fúria como fôlego • A palavra como teimosia • O lirismo como libertação •