A sustentabilidade de novas formas de viver e trabalhar

Passei de fase no videogame da vida fora do escritório. Spoiler: tá mais difícil

Alessandra Nahra
Revista Subjetiva
6 min readMar 20, 2019

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lindo, né? mas é freela-dependente

Já se passaram dois anos desde que saí da sociedade em uma consultoria de UX para escrever e plantar (não: não “larguei tudo”). Eu não tinha um plano muito definido. Já estava produzindo conteúdo para o site Herbívora e o canal no YouTube, mas não sabia qual seria o "modelo de negócio" (ainda não sei). Mas eu tinha vontade, entusiasmo, e dinheiro. Por um tempo, eu não precisava me preocupar com pegar trabalhos: eu pude viajar e fazer cursos e residências, estudando agrofloresta, botânica, permacultura, agroecologia. Escrevendo, fazendo matérias e desenferrujando meu texto que tinha ficado atrofiado por anos de desuso.

Eu sabia que tinha que escrever. Percebi que sou uma pessoa mais feliz nos dias em que escrevo. Além disso, descobri que uma parte forte do meu serviço é comunicar. Então é isso que eu faço. Eu escrevo (e fotografo) para Herbívora, Medium, Instagram, e faço vídeos pro Herbivoratube, porque eu quero. Não há (ainda) remuneração. Se algum dia houver, que maravilha! Mas não é por isso que eu faço: a minha satisfação não está condicionada ao resultado. Faço porque é minha função no mundo.

Não separo trabalho remunerado de trabalho não remunerado: é tudo serviço. Mas eu preciso de dinheiro ainda. Ainda não moro no mato e planto minha comida. Moro na cidade, pago aluguel, tenho seis bichos para alimentar, gosto de viajar, gosto de distribuir dinheiro. E pra isso tudo eu preciso tê-lo. Nesses dois anos foram surgindo oportunidades, e fui começando a ver como eu poderia me sustentar com as coisas que gosto de fazer. Comecei a dar oficinas de horta e compostagem (gravei até um curso online) e a buscar projetos de escrita.

A existência de projetos remunerados em determinados momentos me permite fazer os projetos não remunerados em outros momentos. Eu chamo de redirecionamento de recursos: de onde tem em abundância para onde está escasso. Por exemplo, se eu faço um freela para uma empresa, o que recebo do CNPJ me permite dar oficinas de graça para quem sequer tem CPF. Às vezes eu trabalho muitas horas e muitos dias em um projeto remunerado, e aí tenho vários dias e horas livres para o ativismo, oficinas e mutirões, e meus próprios conteúdos. Quanto melhor ($) for o freela, mais horas livres eu tenho para exercer a minha função no mundo (que inclui, também, ser livre, dançar, preparar minha comida, me movimentar, abraçar pessoas, dar e receber afeto, poder escutar com atenção, olhar nos olhos dos passantes, ficar pelada no sol, me maravilhar com a natureza, abraçar árvores, falar com cachorros etc).

O desconforto confortável de velhos esquemas

Depois de dois anos solta na vida, eu ainda não tenho um plano completamente definidinho. E comecei a ficar um tanto inquieta. Em relação aos sustento e ao alcance da minha atuação. Que são necessidades opostas: por um lado eu preciso de dinheiro. Por outro lado, eu preciso me sentir forte, útil e atuante. Essas duas necessidades tendem a não andar juntas no mundo ao qual a gente está acostumado. O mundo em que, muitas vezes, o músico tem que ser caixa de supermercado pra conseguir sobreviver.

Às vezes, em momentos de maior insegurança, eu me pego olhando vagas no LinkedIn. E daí eu me dou conta: se eu tiver que trabalhar oito horas por dia para uma empresa e uma finalidade que não é a minha, que horas eu vou fazer o meu serviço no mundo? Ao invés disso, vou estar, de novo, vendendo as horas da minha vida e minha potência e força criativa — que são imensas — para um projeto que talvez destoe ou seja absolutamente contrário do que eu acredito e quero construir.

Falei disso aqui:

Ah, mas tem salário, né?

O ser humano, quando encontra alguma dificuldade ou desconforto, tende a ir buscar a segurança do que lhe é conhecido. Mesmo que seja meio ruim. A coisa aperta e a gente volta para o familiar: para o ex-namorado, para um emprego, pra casa da mãe. Pode não ser muito bom, mas pelo menos são dores conhecidas. Mas, se a gente agir sempre dessa maneira, quando e como vamos conseguir fazer e sustentar uma mudança de fato?

Não é possível — pensei eu olhando a planilha financeira de abril, ainda vazia de entradas — que eu vou ter que fazer uns trabalhos sem sentido

pra ganhar dinheiro

e poder sobreviver

quando eu poderia

escrever

inspirar

ensinar

plantar

fazer do planeta um lugar melhor

com o meu trabalho

Mas ao invés

eu vou ter que pegar as minhas horas

e vender elas pra uma empresa que não tá nem aí com a Terra

fazendo tarefas sem sentido e que só produzem lucro pro dono da empresa

pra poder receber um dinheirinho

e pagar boleto.

Sinceramente? Pra mim parece absurdo. Lê aí de novo e vê se faz algum sentido viver assim.

"What is really being wasted is human potential itself", diz Umair Haque, um de meus autores preferidos aqui do Medium, que fala bastante sobre a exaustão do modelo capitalista e suas consequências. Umair diz que há uma mentalidade de escassez que é o que faz "people desperate enough to drive Ubers as a side-hustle — instead of being able to earn that PhD, invent that cancer cure, discover that planet". Acredite: a gente devia estar inventando a cura do câncer, descobrindo novos planetas, plantando comida, cuidando do outro e da Terra, ou simplesmente vivendo os dias da velhice na paz e na felicidade. Ao invés disso a gente tá fazendo o equivalente digital de carimbar papéis, para enriquecer empresas que já são milionárias, em troca de uns trocados pra pagar boletos. (os trechos são desse texto aqui):

Quando ativismo e trabalho se misturam

Quando o freela, ou projeto remunerado, casa com a função no mundo: que maravilha! Poder ganhar sustento com as coisas que se gosta. Quem não quer isso? Mas, como já me foi apontado por mais de um amigo e leitor, trabalhar com o que se gosta é um GRANDE privilégio. Em um país onde boa parte da população mal consegue manter o nariz para fora da linha de miséria, que direito tenho eu de querer trabalhar com o que eu gosto? Que luxo. Até mesmo eu, privilegiada em muitos aspectos da vida, sinto que estou sendo bem ousada em até mesmo sonhar que isso seria possível para mim. Ganhar dinheiro escrevendo e plantando, que sonho!

Mas vamos lá, porque se não é pra imaginar/criar outros mundos eu nem saio de casa, né mores ❤

é :)

Enfim, sinto que passei de fase no videogame. Meu entusiasmo e deslumbre com a nova vida que parecia, nesses dois anos, tão maravilhosa e reluzente (parecia e é, e continua sendo) estão dando lugar a sentimentos e ações mais aprofundadas e mais sóbrias. Acolho a reflexão em busca da sustentabilidade deste outro tipo de vida, a que eu desejo. Nessa fase tenho que ancorar minhas escolhas no cenário da realidade palpável — a minha, dos fatos, do Brasil, da economia, do capitalismo (que é onde a gente ainda habita e circula). Nessa fase vou ter que decidir (grande privilégio) voltar às estruturas confortáveis e aparentemente seguras ou criar e consolidar uma nova forma de viver que eu consiga, de fato, sustentar — e por ela ser sustentada.

Me desejem sorte. E mandem jobs :)

Gosto de hortas, bichos, dança, sol, mar, mato, gente pelada, comida-planta, amor, desejo, entusiasmo, gratidão. Ando pelo mundo vivendo isso e estudando/praticando agroecologia, agricultura sintrópica, permacultura e agricultura urbana. Escrevo na Herbívora e aqui no Medium. Minha vida é um livro aberto no Instagram e também arrisco uns vídeos toscos no HerbívoraTube. Dou oficinas pra quem quer começar a plantar em casa e compostar. Cozinho, danço e dou cada abraço… ❤

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Alessandra Nahra
Revista Subjetiva

Escrevo, planto, estudo, viajo. Falo com bichos, abraço árvores, e vice-versa.