A temporada de Oscar e as péssimas tendências do cinema norte-americano

Carlos Massari
Revista Subjetiva
Published in
12 min readMar 5, 2021

(Esse texto fala sobre quatro filmes: Mank, de David Fincher, Os 7 de Chicago, de Aaron Sorkin, A Voz Suprema do Blues, de George C. Wolfe, e Bela Vingança, de Emerald Fennell).

Os 7 de Chicago, de Aaron Sorkin

Duas falas recentes de pessoas ligadas à indústria cinematográfica norte-americana causaram grandes discussões na bolha cinéfila do Twitter. Primeiro, o roteirista, diretor e produtor Tze Chun disse que a Teoria do Autor foi criada por acadêmicos que nunca colocaram os pés em um set de filmagem e são ignorantes quanto ao processo criativo, depois, a diretora Lexi Alexander afirmou que não é preciso assistir a filmes antigos para fazer cinema e que eles são ruins, sexistas e racistas.

Além de já serem essencialmente burras (a Teoria do Autor foi formulada por François Truffaut, um dos maiores cineastas de todos os tempos, e os filmes antigos são toda a base do repertório linguístico e imagético que temos para o cinema), as duas afirmações também representam sintomas claros do porquê de boa parte do que a indústria norte-americana produz atualmente ser tão ruim.

É claro que o cinema norte-americano tem excelentes diretores e que muitos de seus filmes estão nas prateleiras dos melhores lançados todos os anos. Porém, o grosso de sua produção sofre com alguns tiques intragáveis e, várias vezes, tais tiques são premiados e reconhecidos como positivos.

A temporada de premiação de 2021 é um exemplo: dos principais favoritos ao Globo de Ouro e ao Oscar, a esmagadora maioria é ruim e sofre de problemas similares. Títulos como A Voz Suprema do Blues, Mank, Os 7 de Chicago e Bela Vingança não possuem qualquer apreço pela imagem cinematográfica e usam de elementos políticos da esquerda liberal para conquistar seus públicos mesmo que para isso precisem ter discursos bastante discutíveis ou distorcer a história.

O desprezo da indústria norte-americana à Teoria do Autor, que sempre gerou embates críticos, é fácil de ser entendido. Tirar o controle sobre um filme das mãos dos estúdios e colocá-lo nas mãos do artista não é interessante para quem tem o dinheiro e o poder na mão. Para essa indústria, contratar pessoas como Chun e Alexander, apaixonados pelo processo que é mais mecânico do que criativo, é muito mais inteligente. Que se use roteiristas e diretores que odeiam cinema, afinal, eles terão muito menos a contestar e a desviar da fórmula exata que leva ao sucesso comercial.

Em 2021, a fórmula que os estúdios usam para o “cinema de prêmio” é de um cinema pouquíssimo interessado na força das imagens, muito interessado em se montar em cima de um discurso que agrade a esquerda liberal, público consumidor principal.

Quando há uma fórmula pronta passada pelo estúdio para ser seguida por cada operário de um filme, entre eles o diretor e o roteirista contratados para seguirem ordens, não só não há Teoria do Autor que resista, como qualquer repertório ou noção de linguagem se torna desnecessária.

A melhor definição já feita sobre cinema é a do cineasta soviético Andrei Tarkovski: esculpir o tempo. As reações, emoções e acontecimentos são pinceladas por imagens que precisam ser absorvidas pelo público e que, para isso, são coordenadas em um ritmo que permita o estabelecimento de uma relação entre o que o cineasta pretende passar e quem está assistindo.

O filósofo francês Gilles Deleuze entendeu como cada imagem tem seu papel dentro de uma narrativa e criou várias definições como imagem-ação, imagem-afecção, imagem-pulsão e imagem-percepção. Para que exista uma construção narrativa eficiente no cinema, tanto no eixo do espaço como no do tempo, é preciso permitir que cada imagem amadureça, atinja uma relação própria com o público.

Um exemplo em um bom filme norte-americano recente aparece em Nunca, Às Vezes, Raramente, Sempre, de Eliza Hittman, quando a protagonista é entrevistada na clínica sobre seu relacionamento. A câmera gruda em seu rosto e nos permite ver, por um minuto ou mais, as suas reações à situação, entender pelo que ela passa, sentir o que ela sente. É o uso correto do tempo, é a permissão para que a imagem ganhe vida. Esse é um momento excelente de demonstração do que Deleuze chama de imagem-afecção.

O uso do primeiro plano em Nunca, Às vezes, Raramente, Sempre, de Eliza Hittman

Boa parte do cinema norte-americano recente, porém, não tem qualquer pretensão com a imagem. Todo o conteúdo narrativo é relegado ao diálogo, tudo precisa ser falado. Essa é a característica fundamental de cineastas como Christopher Nolan. As construções imagéticas, bases do cinema, não têm qualquer valor. Provavelmente isso parte de uma incredulidade dos estúdios quanto à inteligência do público e de estudos que mostrem a preferência por conteúdo que é dado de maneira mais mastigada, menos a ser desvendado.

Em A Voz Suprema do Blues, adaptação de uma peça de teatro, não existe nenhum esforço para traduzir a linguagem teatral para a linguagem cinematográfica. Tudo está nas falas e nos atores, nada está no visual. É uma espécie de anti-cinema, de recusa de trabalhar a narrativa através do que a imagem pode oferecer.

É um filme que usa algo como uma imagem-informação. Nós vemos algo, rapidamente há um corte para outra tomada ou posição, nós vemos outra coisa, rapidamente há um novo corte, nós vemos uma terceira coisa, logo surge outro corte. O único papel da imagem é informativo, é mostrar ao público veja, isso é o que está acontecendo agora. Não existe nenhum movimento de transmitir emoção, de conduzir a ação, de estabelecer um ritmo ou de manipular o tempo. Tudo é meramente ilustrativo.

A mesma imagem-informação está presente em Os 7 de Chicago, outro filme que confia em seu roteiro e em seus diálogos espertos acima de todas as coisas. Jamais há espaço para que a imagem tenha qualquer função que não seja ilustrar o que está acontecendo, ser uma muleta do diálogo.

O bom cinema conta sua história através de imagens e usa os diálogos como um algo a mais. O cinema da indústria norte-americana atual se entrega totalmente ao que é falado e faz da imagem mero acessório. É um cinema tão contraditório que se não tivesse imagem, mal faria diferença.

Bela Vingança, dirigido por Emerald Fennell, é uma espécie de modificação do gênero rape revenge, ou vingança de estupro, uma história muito emocional e pessoal. Teria muito a ganhar na aposta em construções visuais mais longas, em uso de rostos, de primeiros planos, no desenvolvimento de uma relação emocional entre personagem e público. De todos os filmes que devem aparecer no próximo Oscar, é talvez o que mais tem a perder ao relegar a importância da imagem.

Isso porque A Voz Suprema do Blues, como adaptação de uma peça teatral, já traz em sua essência a força dos diálogos. Por mais que praticamente não exista nenhuma tentativa da direção de George C. Wolfe de transformá-la em cinema, ela parte de um lugar de não-cinema, de um lugar onde só conversa e corpo fazem sentido. Ignorar o poder das imagens é não mexer em sua origem, é fazer do marasmo norma, mas ao mesmo tempo é apenas uma manutenção de status. Em Os 7 de Chicago, temos um roteirista (Aaron Sorkin) assumindo o posto de diretor e também apenas seguindo o seu rumo, exercendo a sua função sem dar um passo adiante. E não se trata de um roteirista qualquer, mas um que faz parte do grupo espertinho da Hollywood atual, do grupo que produz textos ENGRAÇADOS e INTELIGENTES. Poder imagético, aqui também, nunca foi prioridade.

Fennell, por sua vez, conta uma história que é emocional por natureza, que tem como intenção causar reações variadas no público (do ódio à comoção). Fazê-lo ignorando o que um bom primeiro plano com duração satisfatória, como o citado de Nunca, Às Vezes, Raramente, Sempre, tem a oferecer é uma decisão muito difícil de se entender.

A impressão que fica é que o “cinema de prêmio” norte-americano passa por um processo de transformação em rede social, em imagem que serve para degustação e para consumo rápido enquanto um texto esperto dá conta de todo o resto. A indústria identifica o seu público-alvo, identifica sobre o que quer falar, cria a mensagem pensando em qual é o meio que o atinge com mais eficiência. Em 2021, tal meio definitivamente não é a imagem cinematográfica.

Talvez esse seja o ponto na história no qual de fato existe uma maior separação entre o cinema de autor e o que é feito por Hollywood. Um ano depois do prêmio ao sul-coreano Bong Joon-ho por seu trabalho autoral em Parasita (com Martin Scorsese e Quentin Tarantino também disputando o prêmio), o Oscar se vê preso em uma temporada com pouquíssimos lançamentos de diretores mais famosos e consagrados (devido à pandemia de COVID-19) e precisa olhar para o grosso do que é produzido de maneira automatizada pelos estúdios. Talvez de tudo o que é cotado para as indicações, apenas Destacamento Blood, de Spike Lee, e First Cow, de Kelly Reichardt sejam essencialmente autorais (deixo de fora aqui Nomadland e Minari, que ainda não vi). Triste que David Fincher, outro cineasta estabelecido, tenha decepcionado tanto com Mank.

O principal foco do cinema atual de Hollywood é agradar a esquerda liberal. Isso é notável na mudança do tom das piadas nas premiações, na tentativa de aumentar a representatividade em vários cargos e funções e na temática da maioria dos filmes produzidos.

Aumentar a representatividade é excelente e produzir filmes com temáticas que dialogam com o nosso tempo também. O problema é que Hollywood tenta colocar o seu discurso em todos os filmes, mesmo que ele não seja cabível. E, para isso, muitas vezes acaba perdendo crédito ao usar as armas da direita: mentira, desinformação e distorção histórica.

No quesito das distorções históricas, Mank é o que mais sofre. O problema inicialmente se relaciona diretamente com o assunto que acabamos de falar, uma vez que o filme segue a ideia norte-americana de que o diretor Orson Welles contribuiu muito pouco para Cidadão Kane, um dos maiores clássicos de todos os tempos, e que o roteirista Herman J. Mankiewicz seria o principal responsável pela magnitude da obra. É o desprezo à Teoria do Autor assumundo a pura forma cinematográfia.

Mank, de David Fincher

Essa, porém, ainda é uma questão contornável e apenas um ângulo pelo qual se pode olhar para a história. O maior problema é que o filme cria um enorme subtexto político, com Mankiewicz nadando contra a corrente e tentando evitar a eleição de um governador da Califórnia que é retratado de maneira similar ao que seria Donald Trump em 2020, também tomando diversas decisões que o colocariam em um espectro mais progressista. Mank é uma história sobre cinema, sobre um artista lutando contra seus demônios, sobre processo criativo. E sucumbiu à tentação de aumentar a sua metragem só para se posicionar ideologicamente.

Só que toda a subtrama política de Mank é mentirosa e criada pelos roteiristas. Herman J. Mankiewicz era um homem de direita, anti-comunista e que constantemente fazia doações a políticos do Partido Republicano. O retrato histórico do filme é só uma distorção histórica feita para agradar a maior parcela de seu público.

Que fique claro: eu não acho que um filme de ficção precise ter precisão histórica. Não é uma questão importante. Eu acho execrável, porém, distorcer a história por uma finalidade supostamente progressista mas que, no fim das contas, é apenas comercial.

Os 7 de Chicago também é cheio de distorções históricas, mas já parte do ponto de ser o filme perfeito para apresentá-las. É esperto, é “importante”, é “atual”, é uma representação de um fato que aconteceu em 1968, mas poderia facilmente se repetir em 2020. Perseguição política, ataque do sistema contra quem luta por um mundo melhor, racismo, violação dos direitos das minorias… O combo completo!

Nesse caso, o problema é que as distorções históricas jogam contra o próprio impacto do filme. A versão real dos fatos já é chocante o suficiente, já é uma violência grotesca contra os direitos civis, já é racista, já é repugnante. Aaron Sorkin não tinha qualquer motivo para exagerar em tudo como se estivesse fazendo uma sátira da militância de internet.

Para piorar, a idiotização da militância (vamos ler o nome de cada um dos milhares de soldados que morreram no Vietnã em pleno tribunal!) que Aaron Sorkin faz serve claramente a alguém. E esse alguém é a visão de esquerda liberal, bonitinha, limpinha, que vota em Joe Biden e acha que Bernie Sanders é comunista. A distorção aqui tem cara de lacre o tempo inteiro, tem frases de efeito, tem verniz de LUTA PELA DEMOCRACIA!, mas na verdade apaga o real espírito de luta dos processados naquele julgamento.

Quer um exemplo? Abbie Hoffman, personagem de Sacha Baron Cohen, diz no filme: “I think the institutions of our democracy are wonderful things, that right now are populated by some terrible people”. Parece com alguma coisa que a esquerda liberal diria em 2020? Mas, no mundo real, isso era o que ele dizia: “You are talking to a leftist. I believe in the redistribution of wealth and power in the world. I believe in universal hospital care for everyone. I believe that we should not have a single homeless person in the richest country in the world. And I believe that we should not have a CIA that goes around overwhelming governments and assassinating political leaders, working for tight oligarchies around the world to protect the tight oligarchy here at home.”

Mais uma vez: a quem serve a versão de Hollywood? Com quem ela dialoga?

O caso de Bela Vingança é um pouco mais complicado, e se você não assistiu ao filme ainda e não quer receber spoilers, recomendo que pule para o final desse setor do texto.

Bela Vingança é um filme difícil de ser julgado ideologicamente porque a sua ideia é a subersão do gênero rape revenge. Para isso, porém, ele faz tudo que os detentores do poder gostariam: tira o poder das mãos das mulheres, que recorreram à vingança com as próprias mãos porque absolutamente ninguém no mundo ouvia a elas, e coloca nas mãos das instituições.

Bela Vingança, de Emerald Fennell

É a história de uma mulher que vai em bares fingir que está bêbada para dar lições de moral em homens que tentam estuprá-la (como se isso tivesse algum impacto na mente de alguém que estupraria uma mulher em um bar) e quer vingar a morte de uma amiga que foi varrida para baixo dos panos por todas as instituições da justiça usando exatamente as mesmas instituições da justiça que a deixaram na mão. No final, ainda se martiriza para que a polícia tenha uma chance de fazer alguma coisa direito.

Em questões técnicas e teóricas, o trabalho de Emmerald Fennell ainda não é tão ruim quanto o de George C. Wolfe, David Fincher e Aaron Sorkin. Ela eventualmente acerta em como faz algumas coisas específicas dentro de sua obra (a filmagem de corpos masculinos exatamente como o cinema costuma fazer com os femininos, o flerte constante com a cultura pop, a transformação em comédia moderna), mas o conteúdo ideológico é absolutamente nocivo (em um primeiro momento, eu não me senti confortável para analisar o impacto do que Bela Vingança tem a dizer, mas depois de conversar e ler o que mulheres sentiram assistindo ao filme, os problemas ficaram claros).

Quando analisamos filmes como Bela Vingança, Mank e Os 7 de Chicago, vemos Hollywood nos dizendo: Seja de esquerda, mas não radical! Nada de querer distribuição de renda e igualdade. Nada de responder violência com violência. É muito bom ser anti-racista, anti-sexista, anti-homofobia, mas sem incomodar ninguém! Principalmente os ricos!

Depois da safra de 2020 da temporada de premiação norte-americana ser a melhor em muitos e muitos anos, a de 2021 é a pior. Cabe a nós analisar as causas para tal queda brusca: seria a diminuição de filmes feitos pelos grandes autores causada pela pandemia? Seria o contexto político e social tão proeminente com o confronto entre Donald Trump e Joe Biden?

O fato é que seja no aspecto imagético, com a recusa em usar o poder das imagens, seja no aspecto ideológico, com distorções históricas que servem ao discurso da esquerda liberal, é um cinema feito em linha de montagem, que não quer fazer pensar, que não quer provocar qualquer coisa relevante no público. É um cinema que acrescenta tanto quanto duas horas em uma rede social qualquer. É um cinema feito por quem odeia cinema.

E é assim que voltamos ao início do texto. Como cineastas sem repertório, sem amor pelo cinema, sem noção teórica, sem noção de ritmo e de domínio do espaço e do tempo podem acertar? Como cineastas que acham que sua função é apenas conduzir a encenação dos atores e seguir à risca o que roteiro e estúdio dizem podem sair do marasmo? Não podem. Há muito pouca dignidade em obras como as quatro que citei porque elas não possuem vida nenhuma, são apenas um produto minuciosamente programado pelo que a indústria deseja. E para fazê-las, cineastas que pensam que a Teoria do Autor é coisa de quem nunca pisou em um set são perfeitos.

Se você gostou desse texto, pode me seguir no Letterboxd. Falo sobre cinema quase diariamente por lá!

--

--

Carlos Massari
Revista Subjetiva

Jornalista, roteirista, escritor. Falo aqui sobre cinema e os esportes que não falo em outros lugares.