A tragédia nacional

Às vezes motivo de luto, às vezes de luta

Luan Oliveira
Revista Subjetiva
5 min readFeb 11, 2019

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Em um período de pouco mais de duas semanas, tivemos três tragédias nacionais. Não obstante o incêndio no Museu Nacional no derrapado ano da graça de 2018, tivemos a tragédia em Brumadinho (25/01, um mês após o Natal), o temporal no Rio de Janeiro (06/02) e o incêndio no Ninho do Urubu (08/02). Isso é uma visão positiva, que dispensa analisar casos com repercussões midiáticas menores (porém, tão graves quanto), como a execução sumária de catorze jovens no morro do Fallet por forças do Estado.

O motivo pela qual dispenso tanta tragédia para o propósito desse artigo é que debato aqui a repercussão dos casos, a forma como a população reagiu a ele e o como foi retratado nas mídias sociais pelos internautas. Temos aqui três casos: a ira desmedida e precipitada, a complacência pacífica e a tenra tristeza maternal.

Tomaz Silva // Agencia Brasil

Começo aqui falando sobre a última: o incêndio no Ninho do Urubu foi tratado e repercutido como uma tragédia: jovens morreram carbonizados ou tiveram o rumo de suas vidas mudados para sempre em um acidente horrível e inesperado. Ah, a fatalidade do mundo! O caso, contudo, traz tanto ou mais motivo para revolta do que a tragédia em Brumadinho.

As imagens transmitidas nas redes sociais são de tristeza. O brasão do Flamengo em preto e branco, um “LUTO” em letras garrafais e lamentações. A saudade dos meninos, o desespero de seus parentes. Um típico episódio de tragédia inesperada. Pero no mucho.

Os contêineres eram feitos para abrigar jogadores descansando durante o dia, não dormentes durante a noite. Eram fabricados em material barato, inflamável e que criava uma fumaça tóxica quando queimado. O local em questão nunca foi fiscalizado pelo Corpo de Bombeiros. Encontram-se ainda mais negligências: o local havia sido multado 31 vezes, das quais 10 foram pagas; a prefeitura jamais aprovou o uso dos contêineres como dormitórios e, justamente por não ter licença do Corpo de Bombeiros, o local jamais teve habite-se. O local, até o momento, estava licenciado apenas para obras de infraestrutura, e não utilização efetiva.

Assim como no caso de Brumadinho, aqui podemos culpar ambos os demônios da discussão política moderna: o privado (Flamengo) e o público. O Estado, mesmo sabendo que ali eram executadas atividades periodicamente e tendo aplicado mais de 30 multas, jamais garantiu a interdição do lugar. O Flamengo, ciente de todas as iniciativas do Estado rumo a regulamentação do espaço, jamais interrompeu a utilização do lugar.

Corpo de Bombeiros de Santa Catarina // Divulgação

O amor ao time prevalece — até aumenta. Agora é composto de heróis. A ganância dos dirigentes, que ofereciam contêineres como habitação para menores e sequer cumpria o número mínimo de monitores por infante no local (coisa que poderia ter evitado vários se não todos os óbitos), é desconsiderada. Vamos chorar e orar pelo “mengão”, e que daqui pra frente seja só sucesso — e mais dinheiro para o bolso de assassinos.

Brumadinho, episódio de tragédia que poderia ser prevenida, envolvia uma cultura de centenas de anos de despreocupação com as consequências de mineração e — quer queira ou não — havia uma caminhada no sentido de modificar o atual método de construção de barragens. Todas já estavam desativadas e com planos de descomissionamento gradual, como explicou presidente Fábio Schvartsman.

Diversas pessoas ligadas à Vale foram presas. A direita criticou o Estado e sua fiscalização frouxa (era obrigação do Estado fiscalizar as barragens, como não o faziam, a Vale contratava empresas privadas), a esquerda criticou a privatização da Vale (seja lá o que isso tem a ver, pois a Petrobrás é pública e ainda assim vazou mais óleo desde a privatização da Vale do que barragens se romperam). Pediram intervenção na empresa (!), demissão do Schvartsman e até mesmo fechamento da empresa.

Não se viu ninguém pedindo medidas contra o Flamengo, afinal alguém sequer sabe o nome do presidente do Flamengo? O Google nos ajuda, claro. Uma rápida pesquisa revela o sorriso branco de Rodolfo Landim dentro de seu terno preto. Pena que essa praticidade não chegou à todos.

No caso do temporal no Rio, mal mencionado, havia a ideia de que aquilo só podia ser controlado por Deus e que ninguém passa a odiar o Soberano. Mas o soberano ali não era Deus, e sim seu pastor: Marcelo Crivella diminuía a verba para controle de enchentes no Rio fazia anos e os bueiros estavam mais que sucateados desde o início de sua gestão. Nesse caso, porém, não houve tristeza maternal ou ódio com Deus ou o ex-Universal. Somente complacência silenciosa e observação. Deus sabe o que faz.

Ricardo Moraes // Reuters

Já não se pode dizer que a massa da população brasileira sabe em quê se engaja. As torcidas organizadas de times de futebol seguem sendo, em grande parte dos Estados brasileiros, redutos de criminalidade. Com plena complacência de seus devidos clubes. O futebol nunca foi um exemplo de método de entretenimento cuja industria joga limpo. Sempre foi tão ou mais sujo que outros — como a moda e a TV.

Enviei uma pergunta para os responsáveis pelas relações públicas de um time de futebol durante uma palestra na minha cidade. Ao chegarem na minha pergunta, disseram que estavam com o tempo esgotado e apresentaram certo desconforto. “É uma pergunta interessante, não teriam tempo para só mais essa?”, perguntou um dos organizadores. Os senhores responderam com um não e partiram para as considerações finais, sempre titubeantes. A pergunta?

Se como representantes de relações públicas de um time, eles se sentiam responsáveis em tentar reduzir o machismo e homofobia institucionalizada em ambientes de torcida (haviam apresentado com orgulho evento com mulheres seminuas com as cores do time como atração principal). Também questionei se o time tomava medidas para desencorajar a criminalidade em torcidas organizadas, através de declarações de figurões do time — por exemplo.

O amor ao esporte nacional, contudo, segue maior que tudo. E muita gente vai morrer até que o brasileiro queira saber quem dirige a paixão nacional e cobre medidas contra episódios como o propinoduto da Copa do Mundo de 2014 ou o incêndio no Ninho do Urubu.

Tragédia do futebol foi Chapecoense, o Ninho do Urubu foi descaso e a sujeira dos clubes de futebol do país saindo de debaixo do tapete. Fingir que são a mesma coisa é perpetuar o caos e a desordem num dos maiores centros da atenção nacional.

Algumas horas após terminar a redação desse artigo, recebi a triste notícia de que Ricardo Boechat morreu vítima de um acidente com uma aeronave. Mais um acidente, mais uma tragédia nacional. Poucas horas antes, foi publicado na integra uma transmissão feito pelo mesmo à Rádio Band News FM — na minha opinião e na de outras pessoas que acompanham o meio jornalístico rádio essa que tinha Boechat como único expoente de decência jornalística. Nessa transmissão, Boechat criticava a sucessão de tragédias no país e a negligência das autoridades — em uníssono com a capa d’O Globo desse dia (11/02).

Dedico esse artigo a ele, e a todos os 1.774 que se perderam no descaso da tragédia nacional.

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Luan Oliveira
Revista Subjetiva

Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever.