Aborto e pós-verdade

Edson Amaro De Souza
Revista Subjetiva
Published in
3 min readSep 9, 2020

Muito se fala hoje de pós-verdade, dizendo que as pessoas, de uns tempos para cá, teriam abandonado qualquer apego à verdade em favor de temas que lhes são emocionalmente caros. Sempre foi assim em relação ao aborto. Basta falar no tema que o sangue dos beatos ferve, imunes a qualquer fato real que possa ser demonstrado.

A URSS legalizou o aborto em 1920, e em 1944 ainda havia jovens lutando nas tropas soviéticas contra o nazismo, o que prova que não faltaram crianças nascendo depois disso. A França legalizou o aborto em 1975; o Reino Unido, em 1967; a Itália, em 1978 (sim, é possível fazer um aborto em Roma enquanto se espera a fumaça branca do Vaticano); praticamente toda a Europa legalizou o aborto e ainda existem crianças na Europa, mas os pró-vida falam como se legalizar o aborto fosse exterminar a humanidade.

Aliás, caso você seja uma pessoa desonesta que pretende ter um salário gordo sem trabalhar, a receita é simples: candidate-se a deputado ou deputada e ande pelas igrejas dizendo que é contra o aborto. Dita essa frase mágica, as pessoas não lhe perguntarão sobre economia, turismo, meio ambiente, educação, saúde, pública, coisa nenhuma. A única preocupação dos pró-vida é a inviolabilidade do útero alheio.

Flordelis, Eduardo Cunha, Marco Feliciano, Eduardo e Flávio Bolsonaro e outros parlamentares que dedicaram ou dedicam cada minuto de seu mandato para destruir os direitos trabalhistas e o serviço público elegeram-se fazendo esse discurso moralista, pois a única coisa que a direita tem a oferecer ao seu vasto eleitorado é a ilusão de que controlarão os corpos dos infiéis. Eles precisam que seu eleitorado continue na crença cega de que é possível impedir que Patrícia, moradora do bairro da Pampulha, em BH, e aspirante ao Itamaraty, faça aborto ou que Jefferson, morador do bairro do Rocha, em São Gonçalo, RJ, fume maconha.

O suplente de Flordelis segue na mesma linha. É um tal de Pedro Augusto, que, durante décadas, comandou um programa de rádio, fazendo aquele jornalismo sensacionalista e de baixo nível, estilo Datena com orações para Nossa Senhora Aparecida no final. Sei disso porque meu pai tinha o mau gosto de ouvi-lo. Eram histórias sangrentas sobre bandidos pobres e nenhuma palavra contra os bandidos ricos. Esses nem eram mencionados. E a popularidade desse programa marrom lhe garantiu vários mandatos na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, e ele nunca disse aos seus ouvintes uma palavra sobre o que estava fazendo naquele parlamento, nunca o ouvi dizer, por exemplo, que apresentou um projeto de lei ou que propôs uma CPI.

A legalização do aborto é apenas um espantalho que a direita usa. Quando foi que Eduardo Cunha, Flordelis, a família Bolsonaro e tantos outros demagogos votaram contra? Nunca! Ou vocês têm notícia de algum projeto de lei sobre legalizar o aborto que foi levado à votação no plenário da Câmara ou do Senado? O projeto escrito por Jean Wyllys foi abortado pela presidência da Câmara, que nunca o discutiu.

Legalizar o aborto traria um excelente efeito colateral para nossa democracia: livrar-nos-ia de uma longa fila de fariseus e aproveitadores.

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