abstinência digital?

Raquel Cerqueira
Revista Subjetiva
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4 min readFeb 24, 2020
Foto: Kleyton Amorim/UOL/Folhapress

#TudoTemSeuTempo. Esse é o mote da campanha de prevenção à gravidez na adolescência conduzida pela ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, que como caráter central, prega o adiamento do início da atividade sexual pelos adolescentes. Especialistas no assunto rapidamente manifestaram com preocupação e críticas à eficácia, apontando seus riscos enquanto política de saúde, ainda que seja defendida como método complementar, posição que o ministério passou a argumentar como defesa após a repercussão negativa da proposta.

Um modelo de educação sexual conservador envolve diversos pontos críticos, como a precarização da informação sobre disseminação de IST’s (infecções sexualmente transmissíveis) e a gravidez precoce. Estudos recentes realizados nos Estados Unidos comprovam que nos estados onde os programas de abstinência sexual foram implementados não houve diminuição das taxas de gravidez na adolescência. Muito pelo contrário. Nos estados conservadores onde essa política foi o foco, os índices de gravidez nessa faixa etária aumentaram no período entre 1988 e 2016.

Outro ponto de preocupação que traz a política de abstinência sexual é a falta de esclarecimento sobre violência sexual em meios digitais. Hoje, com o amplo acesso à internet e aos dispositivos móveis, a prática de se relacionar por esses meios já está consolidada e, para adolescentes, se faz extremamente trivial, inclusive para o desenvolvimento das práticas sexuais. Com isso, se popularizou então a ferramenta do sexting, prática que por definição original se referia ao ato de trocar imagens de nudez ou conteúdo sexual via mensagens de texto e hoje abrange o compartilhamento de fotos os vídeos de natureza sexual explícita em qualquer meio digital.

Segundo indicadores do Helpline, site que fornece conteúdo e auxílio via chat e e-mail sobre violações de privacidade na internet, os principais temas para os quais os atendimentos foram registrados em 2019 foram exposição de imagens íntimas e o cyberbullying. Na amostra por faixa etária, vemos que a maior proporção, cerca de 2000 casos, partiram de adolescentes, principalmente do sexo feminino.

Uma política de educação sexual repressora, para além dos motivos já citados, se configura também como uma estratégia ineficiente ao não dar conta da necessidade de se garantir informação sobre segurança digital. Esse peso recai especialmente para as adolescentes mulheres, principal alvo dos crimes virtuais. Casos de revenge porn (disseminação não consentida de imagens sexuais ou pornografia de vingança) são extremamente corriqueiros nessa faixa etária, causando danos psicológicos irreversíveis às vítimas. Quantos casos famosos já vimos de vídeos que viralizaram, causando transtornos, depressão e levando até mesmo ao suicídio de meninas?

A questão também não é a de demonizar a prática do sexting enquanto conduta moral. A expressão da sexualidade na adolescência é natural e, se hoje se manifesta através de outras ferramentas, isso deve ser incluído no debate. Não de forma punitiva mas sim para orientar sobre consentimento, potenciais riscos, maneiras de se precaver e até mesmo de enfrentar possíveis agressões.

Responsável por resguardar a privacidade de seus cidadãos, principalmente menores de idade, o Estado deve prever a disseminação de imagens não consentidas como violência contra os direitos e a integridade, assim como estabelecido em diversos marcos: Convenção Americana de Direitos Humanos, Convenção Interamericana para Prevenir, Sancionar e Erradicar a Violência contra a Mulher e a Convenção Internacional sobre Direitos das Crianças.

Essa proteção não deve ser exercida com o intuito de censurar a conduta ou estabelecer parâmetros para o comportamento de adolescentes. Uma política de educação sexual eficiente deve considerar abrir o conteúdo para auxiliar pais e educadores a construir ambientes de diálogo com os jovens. O acesso à informação é, sem dúvidas, fundamental para a tomada de decisões conscientes, o que influencia também o momento de início da atividade sexual. Se as relações em ambientes virtuais são uma realidade cada vez mais frequente nessa faixa etária, a discussão ideal deve se voltar para alertar os riscos e vulnerabilidades do assunto mas também sobre maneiras seguras de utilizar dispositivos e plataformas digitais.

Para concluir, em contraponto às possíveis soluções castradoras (que na conjuntura atual, para surpresa de ninguém, ignoram estatísticas e evidências científicas), existem algumas importantes iniciativas da sociedade civil para a promoção da garantia da privacidade digital. Além do Helpline, outra plataforma de informação é o site Acoso Online, no Brasil, Assédio Online. O portal disponibiliza informações de toda América Latina e ferramentas úteis para as vítimas de crime de exposição de imagens sem consentimento, trazendo orientações a partir de quatro eixos: respostas do Estado, políticas do setor privado, possíveis ações da comunidade e segurança digital.

imagem do portal Acoso Online

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Raquel Cerqueira
Revista Subjetiva

Comunicadora social. Especialista em Sociologia Política e Cultura. Desbravando e resgatando caminhos da escrita e de mim mesma.