Acontece.

SantosJr
Revista Subjetiva
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5 min readJan 4, 2019

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Acontece.

No interior da minha mente acontece. E na sua também.

Praticamente em qualquer lugar. Na rua, nos corredores do supermercado, na saída da academia, numa tarde durante o trabalho, numa viagem curta, num passeio no calçadão, na correria do centro da cidade, numa calmaria deleitada naquela cafeteria que parou por acaso, num show, na balada, na aula, no metrô, na volta pra casa.

A dinâmica costuma ser a mesma.

Parco entendimento, ignorância sabida, curiosidade aguçada, misturados com a sensação de conhecer um desconhecido por muito tempo. Uma segurança de estar certo, que aquele instante não é por acaso, que um está ali apenas por causa do outro.

Pode ser por um jeito próprio de arrumar o cabelo, a piada nem tão engraçada mas que te arranca risada, um modo peculiar de dançar, ou a roupa cheia de estilo, a maneira aparentemente singular de se movimentar, a combinação entre a cor da blusa e o tom de pele, a luz do local que concede um foco distinto, alumiando justamente aquela pessoa.

Desde a adolescência tem sido assim. Pensamos estarmos mais preparados com o tempo e a experiência. Julgamos que a idade deveria nos dotar de razão suficiente para distinguirmos o que soa como um ímpeto de insensatez, e que portanto não deve ser levado a sério. Mas, depositamos demais nesse tino que chamamos razão, e não nos damos conta que algo que se apresenta tão bobo, quase como uma canção de amor, pode nos fazer ignorar de vez toda a suposta lógica ao redor da situação.

Contudo, é sempre a mesma história. Aquele sorriso, o jeito de olhar, o tom da voz alheia, cada aspecto do outro nos pega desprevenido.

E as já familiares borboletas voltam a vaguear em nossa barriga, ao tempo em que o rosto ruboriza suavemente, as pupilas dilatam, o peito acelera um tanto o passo, e os pés parecem desgrudar, levemente, do chão.

Tudo de novo, com cara de novo.

Sim. Foram os ínfimos detalhes, aqueles que nem sabemos enumerar, e que despercebidos, em qualquer outro momento, noutro lugar, ou em outra pessoa seriam indiferentes.

Mas é aquele rosto que fica preso em nossa mente. Aquela boca repleta de dentes, gargalhando. O pescoço, o pulso, o nariz, a cintura, o quadril, o peitoral, o andar. A silhueta de um ilustre desconhecido. Ou aquele conhecido, que agora, porém, de repente, revela-se ilustre. Como nunca havia notado antes?

E, instantaneamente, vislumbramos a pessoa de nossa vida, sem a qual jamais poderíamos viver. E ali está, quase como mágica, uma companhia pra todas as horas, que estará com você quando se acabar de tanta diversão e também quando acabar toda a diversão. Quando o mundo te prostrar de joelhos e precisar de um colo, ou alguém que possa precisar do colo seu. Há quem veja os filhos, a casa, almoços de família, viagens, velhice, longas e longas tardes de conversa, até o cansaço os colocarem pra dormir, ou os corpos se atraírem, atracados, incansáveis, sedentos, selvagens e carinhosos. O certo é que tudo parece indicar a existência de profunda empatia; de ternura inabalável; de um humor preciso e tempestivo; de confiança indiscutível; de planos comungados; de valores espelhados; de tolerância infinita; de hábitos compatíveis; de gostos partilhados em músicas, filmes, livros e até em opiniões de política e justiça social. Compartilhando o que até então era segredo, com a oferta da própria intimidade, respondida com tamanha compreensão ao conhece-la, que nos fará querer ofertar o mesmo também. E você a ajudará em suas questões, e ela te livrará do peso de seus infortúnios.

Sim, seu esboço da pessoa que não sai da sua cabeça é deslumbrante. Não teria como dar errado! E você sequer cogita isto. Aquela criatura em si é bela, como ninguém mais, por dentro, por fora. Aqueles nariz adunco, o barulho estranho que faz quando ela ri, seu jeito estabanado, e até aquele leve mal humor matinal, são os arremates da obra prima que encontrou. E não há cópias. Nessa peça única, você é o único elemento que encaixa neste raro caso de perfeição.

Loucura. Deixo esta palavra para os cínicos, os desiludidos e os desamparados.

Na verdade é sim insanidade. Todavia, se for pra ser diferente, que vale estar são? Quão bonito é perder-se e se encontrar!

E essa projeção descontrolada de fantasias, avalanche de expectativas e suspiros, miríade de cores, sabores e texturas faz o mundo parecer incrivelmente mais interessante.

Do nada se faz o todo.

O erro da paixão (instantânea ou relutante, curta ou persistente, branda ou torrencial) não é existir e iludir. Falha, ela, ao querer suicidar-se em silêncio; em não ousar confessar-se; em não se adaptar ao enlace com a realidade; berrar, insistentemente, onde não há eco, ainda que outrora houvesse; nos compelir a mudarmos de formato total e continuamente, na toada da sentença alheia; em não se reconstruir; em partir antes da hora; em não olhar pra trás, recuperando a própria história, não olhar no espelho, refletindo sobre o que é refletido, não olhar adiante, vagando sem rumo. O erro da paixão é errar. Mas quem não erra?

E quando tudo parecer uma peça mal ensaiada, uma tragédia teatralizada, uma sinfonia desafinada, um roteiro mal escrito, um sonho tolo e infantil, lembre-se que essa ilusão que agora estraçalha suas expectativas com a marreta da realidade foi a mesma que uma vez te trouxe de volta as borboletas. Lembra?

Assuma sua responsabilidade. Não culpe a paixão pelo o que você fez e faz depois dela. Seria como se o mundo te condenasse, hoje, pelo seu primeiro choro ao nascer, justo aquele, tão esperado, que anunciava sua chegada.

Todos somos seres errantes e errados. Você já sabe que viver é difícil, por que deveria eu perder tempo pra te explicar que conviver é muito mais complicado?

Calma. Também tenho medos… Não precisa falar deles; apenas sente-se ao meu lado. Porém, se quiser, pode me contar a inteira história sobre aquela pessoa, de novo. Todo aquele caso de insanidade.

Afinal, acontece.

E, ao cabo, calado, vou te olhar, com a face serena de quem repete tantas e tantas vezes, para os outros e para si:

Apaixone-se. Desapaixone-se. Reapaixone-se.
Apaixone-se, pelo novo, pelo mesmo, ou pelo velho.
Pode até doer, eu sei. Mas vá! Viver machuca, de fato. Só que a vida não é só dor.
Pois loucos são os outros, aqueles, que seguem com os pés acimentados no chão, temendo flutuar. Retraídos, agressivos, afugentando as borboletas, chamando isso sanidade.

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SantosJr
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Leitor incauto, não confunda o literal com o literário. Pois eu também tento. https://www.facebook.com/escritorSantosJr/