Admita: você não tá vivendo para viver, tá vivendo para postar

E quem tá dizendo isso não sou eu, são os próprios criadores das redes sociais

Ana Clara Barbosa
Revista Subjetiva
6 min readSep 25, 2020

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@arrasoli

Desde que o isolamento social tem afrouxado — e ele tem afrouxado, você concorde ou não — eu tenho pensando muito sobre nosso comportamento nas redes sociais. Me irritou muito ver gente por aí vivendo como se nada estivesse acontecendo, em aglomerações, festas, etc. Parecia que a idiota era eu, trancada em casa, passando meses sem ver as pessoas que eu amo, enquanto um monte de gente tava por aí vivendo normalmente, sem consequência nenhuma. Meu pensamento sempre foi: “Você quer ser um puta de um ARROMBADO? Beleza, mas não posta”.

Até que os casos começaram a se estabilizar, os comércios, a abrir e, aparentemente, a vida ganhou um pingo de normalidade por baixo das máscaras, do álcool gel, dos cumprimentos pelo cotovelo… Então eu, assim como várias pessoas que estavam isoladas desde março, começaram a flexibilizar as saídas. Eu abri, sim, algumas exceções, como ir visitar meu pai, encontrar algumas poucas pessoas em casa ou na casa de alguém, passei um final de semana no nosso apartamento da praia. E aí vem o questionamento:

Postar ou não postar?

Eu, no caso, acabei postando. Postei mesmo, achei que não tava fazendo nada de errado e segui a vida. Mas esses dias novamente fui pega pela raiva depois de ver um story de um conhecido — conhecido esse que desde o começo do isolamento tem saído normalmente — em uma festa lotada, ninguém de máscara. O auge da aglomeração, o verdadeiro terror da OMS. Fui invadida por um ódio, me senti desrespeitada, idiota. Me fez mal mesmo, fiquei chateada. E disso surgiu a reflexão: qual a necessidade de fazer um post em um momento como esse?

Necessidade mesmo. Eu podia não ter postado nada, mas a vontade fala mais alto. A necessidade de mostrar o que eu tô bebendo, o que eu tô comendo, tirar uma foto bonita para ocupar o feed de algumas pessoas que, muitas vezes, sequer me conhecem. Pra que? Sendo que uma foto pode impactar alguém que tá em casa há meses, sem afrouxar o isolamento, ao contrário de mim. Eu preciso mesmo expor esse momento? Tenho refletido muito sobre o porquê dessa necessidade, de onde vem isso, e então tive que respirar e admitir que sim, faço uso excessivo do celular, das redes sociais, e que tudo isso faz parte de mim hoje. E não foi sempre assim: nasci na década de 90 e não cresci com internet à disposição 24/7 na minha vida.

Eu já me peguei pensando se iria para alguns lugares ou se faria certas coisas casos as redes sociais não existissem. E, correndo o risco de soar extremamente superficial aqui, eu admito que a resposta seria não para alguns casos. Não que eu não fosse fazê-las, ou que eu não tenha me divertido, mas existe algo muito atraente sobre fazer publicar bonitas e mostrar um estilo de vida que, sim, é real para mim, mas que não corresponde a 100% da minha personalidade, por mais que eu exponha majoritariamente essa parte.

A verdade é que as redes sociais foram criadas para causar essa sensação de vício mesmo, e quem diz isso são os próprios desenvolvedores dessas tecnologias. Você já deve ter visto matérias dos gurus do Vale do Silício afirmando que eles não deixam seus filhos consumirem as inovações que eles mesmo criaram. Por quê? Se as redes sociais são tão incríveis e benéficas, por que não deixar suas crianças as consumirem?

Em documentário lançado pela Netflix, intitulado “O dilema das redes”, os maiores engenheiros dessas empresas relatam como as mídias sociais foram criadas para causar sensações de vício, trazer a necessidade constante de entrar nos feeds e consumir cada vez mais esses conteúdos. Entre o elenco, estão nomes como Tristan Harris, ex-designer ético do Google; Tim Kendal, ex-presidente do Pinterest; Justin Rosenstein, ex-engenheiro do Facebook; Roger McNamee, investidor em tecnologia, e alguns outros, todos eles afirmando a mesma coisa: as redes sociais viciam, e é de propósito.

Apesar de terem sido criadas com a ideia de aprofundar laços, criar conexões, trazer compartilhamento de coisas em comum entre as pessoas, nada na vida é de graça dentro da lógica capitalista. Logo, as plataformas descobriram que existia uma fórmula para ganhar dinheiro com essas tecnologias, mas, para isso, o consumidor teria que ser facilmente manipulável. Existe uma ingenuidade de achar que nós temos essas belíssimas tecnologias de graça, que este foi um grande favor para a humanidade, quando na verdade, se você não está pagando pelo produto, você é o produto. Isso explica muito o funcionamento das redes, nós expomos tudo da nossas vidas, e esses dados são compilados, usados contra nós mesmos, em troca de dopamina momentânea, que causa uma sensação de bem estar passageira. Como disse o professor da Universidade de Yale, Edward Tufte:

Existem apenas duas indústrias que chamam seus clientes de usuários: a de drogas e a de software

Essas empresas acumularam tantas informações sobre nós, que hoje elas são capazes de antecipar comportamentos. Eles conseguem não só saber como nossa saúde mental está, mas também, o que certos estados de humor nos levam a fazer. A situação era uma quando as grandes corporações usavam esses dados para publicidade, para nos mostrar os produtos que nos interessavam — o que, ao meu ver, já é bem invasivo, mas existe quem discorde e até goste desses anúncios tão bem segmentados das redes sociais.

O problema é que a coisa escalonou para outro nível, e é inegável associar o avanço da extrema direita pelo mundo com a criação das redes sociais. Já foi amplamente divulgado e discutido como o Facebook teve uma influência direta na eleição do Trump, e nós vimos a mesma coisa acontecer aqui no Brasil. Esse ambiente online validou discursos absurdos, como o terraplanismo e as falas antivacina, fazendo com que essas teorias mirabolantes fossem vistas por alguns apenas como uma “questão de opinião”, quando, na verdade, correspondem a um gigante retrocesso. É um fato: a internet é determinante nas nossas vidas hoje e, por ser algo tão novo, nós ainda não temos a dimensão de quais serão as consequências que ela terá na humanidade. No entanto, o que temos visto até agora já é bem preocupante.

Mas afinal, como as redes sociais conseguiram criar essa dinâmica?

O ser humano tem a necessidade básica de se conectar com o outro. Isso é algo nosso, que nos acompanha desde sempre. As redes sociais conseguem facilitar esse contato, otimizar nossas relações.

É realmente uma dinâmica de vício, a notificação causa a sensação de bem estar, o like gera a impressão de aceitação. A dopamina, o neurotransmissor relacionado ao bem-estar e à recompensa, é liberada quando você realiza atividades agradáveis, como compartilhar um conteúdo e receber likes por ele, por exemplo. Nós não temos consciência que estamos produzindo a dopamina, mas como sentimos prazer, obviamente queremos mais dessa sensação. Segundo um estudo realizado pela Universidade do Estado da Califórnia, o mesmo sistema acionado pela cocaína pode ser visto também em usuários dependentes do Facebook. Ou seja, a coisa é séria — e bem real.

A gente tira sarro, despreza as pessoas “ignorantes” que caem nas absurdas fake news, mas a verdade é que a dinâmica das redes sociais é bem perigosa, e ela foi arquitetada desta forma. Eu não posso afirmar que os criadores das redes sociais estavam mal intencionados desde o início, mas o fato é que essas tecnologias existem, e elas têm influenciado muito a forma como vivemos. É preciso acabar com a ideia de que usamos todos esses sites de graça e não há nenhum custo para isso, porque o preço é alto, e nós ainda sequer temos a dimensão exata de quais outras consequências teremos por conta das redes sociais.

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Ana Clara Barbosa
Revista Subjetiva

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