Análise: “Vá, coloque um vigia” e o racismo em 2020

Cecília do Nascimento Pereira
Revista Subjetiva
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4 min readJul 18, 2020

“A ilha de cada homem, Jean Louise, o vigia de cada um é sua própria consciência. Não existe essa coisa de consciência coletiva.”

Divulgação/Amazon

Mais de 50 anos depois da publicação do clássico vencedor de prêmios literários O sol é para todos, o rascunho de Vá, coloque um vigia, da autora Harper Lee, foi encontrado — apesar de provavelmente ter sido escrito na mesma década que o primeiro mencionado — dando, portanto, anos depois continuidade à história de personagens já conhecidos e aclamados pela literatura.

O livro publicado em conta a história de Jean Louise Finch, a famosa Scout, que vinte anos após os acontecimentos tratados em O sol é para todos, retorna de sua casa em Nova York para visitar o pai na pequena cidade sulista Maycomb, no Alabama. Vinte anos mais velha e com a moral e valores construídos de forma independente pela vida adulta, Jean Louise se encontra em conflito ao não ser mais capaz de reconhecer a cidade natal, nem de se reconhecer nela.

O livro trata do processo de amadurecimento da protagonista, ao se ver fora dos padrões da comunidade e surpreendentemente se encontrando numa situação onde discorda do pai, Atticus Finch, personagem notável de O sol é para todos por sua conduta e moral, e tem tudo o que pensava conhecer e ter firme como uma rocha ser repentinamente abalado, entre descobertas sobre si mesma e o meio onde nasceu e cresceu.

Apesar de tratar dos mesmos personagens e pano de fundo, não se pode considerar Vá, coloque um vigia uma sequência do clássico de Harper Lee, visto que apesar da temática ser semelhante, a forma como é tratada é diferente — dando certo destaque ao processo de maturação e emancipação moral da protagonista Jean Louise -, também considerando que, apesar do caso do qual a história de O sol é para todos gira em torno ser mencionado, o livro também não trata mais dele. Temos personagens já conhecidos, como a própria Jean Louise e o pai, menções sobre Jem — que neste livro, 20 anos depois, é dado como falecido — e outros mais devidamente apresentados como a tia de Jean Louise, Alexandra e o Tio Jack.

Jean Louise se encontra perplexa ao voltar de Nova York, num contexto histórico dos Estados Unidos que começava a tratar do fim da segregação racial, ao perceber a realidade perante as ilusões que tinha quando criança. Seu pai e ídolo moral se revela racista. Entre outras revelações sobre o mesmo, e outros personagens, esta é a que eu quero destacar. Jean Louise passa a descobrir seus entornos racistas e entra em conflito com a própria consciência, emergindo em sua própria identidade e matando no processo alguns ídolos e a própria inocência.

O tempo todo, quando lemos O sol é para todos, percebemos o racismo e desigualdade racial. E é um baque para Jean Louise perceber isso em Vá, coloque um vigia.

Admito que me decepcionei com o personagem Atticus Finch, visto como modelo de moral, de justiça, mas se analisarmos um pouco mais, ainda hoje nos deparamos com “sustos” semelhantes ao de Jean Louise, ainda hoje existe certa “inocência”, se não cegueira, referente ao racismo e desigualdade social em nossos derredores. Mas como Jean Louise, temos a oportunidade de amadurecer e deixar com que nossa consciência nos guie para longe desse olhar embaçado.

De qual inocência — ou melhor, ignorância — me refiro?

Imagino que você, leitor, já se deparou com falas semelhantes a esta: Hoje em dia tudo é racismo, e talvez tenha concordado, talvez discordado. A questão é que sempre foi racismo, mas assim como aconteceu com a bolha de Jean Louise ao se deparar com o fim da segregação racial e a ameaça de drásticas mudanças na sociedade a partir disso — desconfortáveis a alguns — não percebemos, até que um dedo foi apontado e um grito ouvido dizendo que é racismo sim, sempre foi. Destaco aqui que escrevo de uma perspectiva branca, minha e de Jean Louise, para também brancos. Ninguém precisa dizer aos negros o que é racismo, eles é que devem nos dizer, mas por muito tempo, como a protagonista do livro, vivemos a parte do que acontecia.

Pontuo que o que acontece com Jean Louise deve moralmente acontecer a todos nós, o abrir de olhos, pois infelizmente ainda hoje, meio século após o livro ser escrito, ainda temos muito a vencer em termos de desigualdade racial. E o fato de ter começado a ler esse livro justamente este ano, dentro do contexto das lutas cada vez mais emergentes e ganhando visibilidade do Black Lives Matter e do Movimento Negro no Brasil me fez refletir mais sobre minha atitude perante tudo o que acontece.

Como Jean Louise, muitas vezes ainda me encontro abrindo os olhos para uma realidade racista que eu ainda não via — não de maneira ampla, mas em detalhes como termos utilizados na língua portuguesa que nunca antes eu tinha percebido que eram racistas ou no fato de estar no segundo ano da faculdade e ainda não ter encontrado nenhum professor negro na minha universidade, e espero continuar abrindo os olhos cada vez mais, até um dia não ter mais nada para ver.

Recomendo a leitura do livro para todos que tiverem a oportunidade de ler. Harper Lee é uma ótima escritora, desde a forma como aborda o assunto, até a maneira como nos envolve nele em diálogos inteligentes e humor irônico, mas o que mais recomendo acredito ser a evolução da personagem que também deveríamos ter. De abandonar a imparcialidade do nosso ponto de vista e emergir dessa discussão com valores mais igualitários.

Termino com uma citação do próprio livro que marca uma grande verdade, “O preconceito, uma palavra suja, e a fé, uma palavra sagrada, têm algo em comum: os dois começam onde termina a razão.”

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Cecília do Nascimento Pereira
Revista Subjetiva

Portfolio de redação e revisão. Graduação em Pedagogia e Letras - Inglês. Pós-graduação em Psicolinguística.