Anedotas sobre morar sozinho

Não tem diálogo

Giovanna Indelicato
Revista Subjetiva
5 min readMar 28, 2018

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Gabriel mudara-se há pouco menos de dois meses do apartamento que dividia com outros três amigos. Concluiu, quatro anos após terminar a faculdade, que chegou na idade em que a maturidade exige de cada um o seu espaço.

Ainda acostumando-se à rotina e ao apartamento não de todo mobiliado, mas que acredita ter a sua cara, Gabriel acorda atrasado, pois não há barulho na casa. Pelo menos não tem fila pro banheiro, pensa. Entra na sala e dois envelopes foram jogados por debaixo da porta. Mas será possível que toda conta que chega eu tenho que pagar? A louça de três dias atrás ainda está na pia e tsc, não tem nenhum copo limpo.

A verdade é que, ao todo, só tem três copos e, de fato, nenhum está limpo. Olha em volta, na sala, e se arrepende de ter trazido a planta do apartamento anterior, pois ela já apresenta claros sinais de abandono. Sai de casa, ele e a planta ainda sem água.

Ilustração de Sally Nixon

Tânia mora sozinha há oito anos, e fez da sua casa o seu lugar no mundo. Cada móvel, tapete, vaso e quadro foi delicadamente escolhido para refletir sua personalidade — e a luz que vem da janela em dias de sol. Seis desses anos, porém, esteve em um relacionamento sério, cada vez mais sério, com Diogo. O dia que Diogo chegou em sua casa, direto do trabalho, segurando um quadro de um metro de altura com os personagens do Star Wars e exclamando “Acho que vai ficar perfeito no escritório!”, Tânia terminou tudo.

Tinha agora sua casa de volta só para si. Nas últimas semanas, só vestia roupa quando era extremamente inconveniente ficar sem, ou seja: visita da mãe ou do técnico da NET. Ela tinha até duas novas manchinhas redondas e vermelhas, uma no seio esquerdo e uma ao lado do umbigo, causadas por respingos de óleo em uma irresponsável empreitada com frituras e nudez.

Olhava com graça para as novas manchinhas, que em meses passariam de vermelhas para algum tom de marrom e ficariam ali para sempre, sabia. Sentia que as manchinhas eram mais um detalhe na decoração.

Pedro tem dezoito anos e saiu da casa e da cidade dos pais quando passou no vestibular. Mora agora em uma kit net, pois sua mãe não queria que fosse influenciado pelo ambiente de drogas e falta de estudo das repúblicas.

Certo dia, ao fechar a torneira do chuveiro, notou que esquecera a toalha. Não havia como gritar para que a mãe a buscasse, e não sabia como proceder nessa situação inédita. Em pé debaixo do chuveiro fechado, pelado e ensopado, Pedro não sabe se a melhor decisão seria correr até a lavanderia para buscar a toalha, percurso que atravessa e, por consequência, molha, toda a casa, ou ficar ali, parado, até que não houvessem mais gotas escorrendo.

Optou por correr até a lavanderia. No caminho, pisou no baseado que ficou no chão da sala após o almoço.

Ilustração de Kelsey Smith

Laura é freelancer e trabalha de casa. Inicialmente, o plano era trabalhar no escritório, pois é importante que se separe o ambiente de trabalho do ambiente de lazer da casa, leu certa vez em um revista de sala de espera. Mas após oito meses nessa situação, a verdade é que o trabalho e o lazer se espalham por todos os ambientes. No sofá, manchas de caneta colorida no tecido, bem ali ao lado do controle remoto. Na bancada, dois copos com um fundinho de bebida colorida e um pote com migalhas, em cima de um amontoado de papéis de rascunho.

No criado mudo, uma pilha de livros de referência. Em épocas de prazos apertados, Laura descuida da organização e da alimentação, sobrevive à base de café e bolachas. Não sai de casa há três dias, mas a procrastinação faz com que sua vida social fique muito agitada: não se passam dez minutos sem que o celular apite com mensagem de algum amigo, enviando fotos e histórias do mundo lá fora.

No último dia antes da entrega, Laura faz planos de comemoração. Lavar e pentear o cabelo, afinal. Escovar os dentes. Trocar o pijama por uma roupa. Os grupos de mensagem estão mais agitados que nunca. Decidem o bar. Chega a hora. Laura encontra os amigos e mal reconhece a própria voz: oi!

Caio fecha o portão do prédio apalpando o bolso da calça com a mão livre, em busca do isqueiro, o cigarro já na boca. Será que tranquei, pensa, ao dar os primeiros passos na calçada. Hesita. Tranquei. Chega no ponto de ônibus junto com uma chuva fina, e a janela do quarto, ficou aberta?

No escritório, liga o computador e se depara com a data, dezoito de março. Pagar a conta de luz amanhã, sem falta. Intervalo do almoço, caminha e fuma outro cigarro, sob o céu coberto de nuvens fortemente carregadas, merda, não vai dar pra lavar roupa hoje. Um trago. Vou ter que repetir meia. Entre uma tarefa e outra, tenta fazer uma lista mental de mercado pão, manteiga, sabão em pó, detergente acho que ainda tem… E pensa, com desânimo, na pior de todas as tarefas domésticas: desempacotar e guardar as compras.

Uns dois ou três cigarros depois, com as duas mãos já cheias de sacolas, uma deles com o detergente, afinal, uma hora ou outra vai precisar, Caio se contorce para pegar o chaveiro na mochila sem deixar cair nada das sacolas, e, principalmente, sem deixar a sacola dos ovos bater em nenhuma outra. Põe a chave na fechadura. Não gira. Ficou aberta.

Ilustração de Kristen Sims

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Giovanna Indelicato
Revista Subjetiva

roteirista e diretora de todas as fanfics que já passaram pela minha cabeça