Aos que morrem o tempo todo e não vão parar tão cedo

Gabriela Ventura
Revista Subjetiva
Published in
6 min readJul 30, 2017

I — Das mortes simbólicas

O Tarô de Marselha — talvez o mais clássico oráculo de cartas ocidental, e sem dúvida, base para o desenvolvimento de iconografias posteriores — foi criado em alguma região italiana no século XV, e entrou na cultura francesa com a conquista de Milão e do Piemonte em 1499*. Ele é composto por 78 lâminas e os desenhos, de clara inspiração medieval, são divididos em dois conjuntos. O primeiro, que leva o nome de Arcanos Menores corresponde ao baralho tradicional, quase idêntico aos que usamos hoje, com suas cartas de ás a dez em quatro naipes (paus, espadas, copas e moedas) e as figuras da corte para cada um deles (valetes, rainhas e cavaleiros) totalizando 52 cartas. As 22 cartas recebem o nome de Arcanos Maiores, e representam cenas e personagens carregados de simbolismo. Elas têm, em geral, um nome e um número, mas há exceções. A figura do Louco, por exemplo (que num baralho tradicional poderia ser um coringa) tem nome, mas não tem número.

Já a carta XIII tem número, mas não tem um nome. No entanto, é fácil entender porque é chamada de Morte, e pode causar pânico durante uma leitura: não basta que estejamos diante da tradicional imagem do esqueleto empunhando uma foice; há ainda duas cabeças que parecem pertencer à realeza, bem como outras partes decepadas num chão completamente negro — que não ajudam em nada na popularidade da lâmina. Ninguém quer sair de casa em um domingo e dar de cara com essa cena de mutilações sobrenaturais em um parque. Assim como evitamos, tanto quanto possível, pensar na morte como fenômeno biológico, acelerado ou não por uma figura sinistra. E, no entanto, no percurso de uma existência, experimentamos diversas mortes simbólica, ainda que não as chamemos por esse nome.

O Arcano sem Nome fala sobre transformações e revoluções. Em cada um desses eufemismos, é preciso encarar o que, no fundo, intuímos (e por isso mesmo costuma nos deixar tão apreensivos): se algo está prestes a mudar, é porque algo está prestes a morrer.

*Há controvérsias. Há quem diga que as cartas são anteriores, há quem diga que são falsificações do século XIX, mas isso importa muito pouco para o meu texto já que não sou historiadora ou taróloga.

II — A última ceia

Há coisa de um mês eu conversava com um amigo sobre uma morte simbólica que eu estava prestes a viver, um processo de quase 15 anos que estava terminando e foi uma das partes mais importantes da minha vida adulta. Esse meu amigo viveu parte desse tempo comigo, mas fez escolhas muito diferentes das minhas, e hoje temos vidas que não poderiam ser mais opostas. Em um certo sentido, representamos, um para o outro, a bifurcação não escolhida: ele se sentia sufocado e partiu, eu não tive coragem — precisei fazer o caminho mais longo. Eu mandei para ele algo que escrevi a respeito, uma espécie de despedida, e ele comentou: "(…)acho que foi no momento certo. Lavrado o campo, a casa limpa, a mesa posta, cada coisa em seu lugar (claro, sempre com uma sujeirinha ou outra no canto, o próximo que dê um jeitinho), mala fechada, partiu." Eu devo ter chorado um pouquinho — eu chorei tanto no último mês que mal me lembro de ocasiões em que não o fiz: ele havia citado um dos meus poemas favoritos.

Consoada

Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
- Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.

Manuel Bandeira

Assim como o Arcano sem Nome do Tarô de Marselha, o poema de Bandeira não nomeia diretamente a Morte, mas é claro que ele lida com o fato de que um dia ela prestará uma visita ao poeta e a nós. O eufemismo "Indesejada das gentes" sempre me faz rir, assim como a possibilidade de uma saudação informal em contraposição ao medo: "alô, iniludível". Tanto já foi dito sobre esse poema (que sempre me pareceu um bloco de mármore esculpido sem hesitação, não há uma palavra que esteja fora do lugar, ou que soe estranha) e, ainda assim, eu fico sem saber o que escrever para dar conta de um verso tão simples, sintético e corajoso como "O meu dia foi bom, pode a noite descer". O mundo de elementos que essa afirmação e essa permissão contém, e que jamais saberemos.

E a a sequência final, citada pelo meu amigo, é composta de ações concretas, mas nas quais eu sempre achei que cabiam um sem número de estados emocionais. "Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,/A mesa posta, Com cada coisa em seu lugar". Existe uma naturalidade nas decisões finais que transforma a última ceia do poeta em uma performance de dignidade — não para o mundo, mas como um acerto de contas consigo mesmo. Eu, que costumo ser tão rebelde e, na maioria dos casos, concordo com Dylan Thomas sobre não ir embora sem espernear, acho Consoada um poema emocionante; há horas em que você de fato precisa arrumar as coisas e esperá-la chegar.

Foi o que eu fiz.

III — Morri, mas passo bem

Aos que morrem o tempo todo e não vão parar tão cedo: o Arcano sem nome é um dos nossos símbolos; é encará-lo, apesar do medo. Vamos arrumar jeitos de dizer alô a ele, já que não é possível faltar a esses encontros. Não vou negar que sinto alguma inveja por pessoas que parecem ter vidas extremamente estáveis: gente que parece morrer muito pouco. Não é o meu caso e, se você está lendo até aqui, suponho que não seja o seu.

Uma morte a cada vez que o amor acaba, ou acaba um relacionamento antes do amor acabar (o que é pior ainda).

Uma morte a cada vez que atualizamos os contatos do seu celular e percebemos que nunca mais falamos com aquele amigo que um dia foi tão essencial.

Uma morte a cada mudança de casa ou de cidade. Mortes que precisam ser encaixotadas, etiquetadas e enviada em caminhões de mudança.

Uma morte a cada ciclo que encerramos. A cada sonho que deixamos de sonhar, a cada prioridade que muda, a cada renúncia feita em favor do que quer que seja.

Uma morte a cada vez que nos tornamos algo diferente do que éramos. Uma morte e depois outra, e mais uma, e tantas que às vezes achamos que não vamos aguentar, às vezes fazemos piada a respeito. Tanta gente que precisa morrer para continuar vivendo, até que, por fim, ah, mas vocês já sabem o que há no fim.

Mas até lá a gente continua — e se o Arcano sem nome bobear, a gente até dança com ele.

O sétimo selo — Ingmar Bergman, 1957

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Por falar em morte (?), ano passado escrevi um texto sobre Dança Macabra e O Sétimo Selo. Você pode lê-lo aqui e, se gostar do que escrevo e quiser acompanhar minhas desventuras na internet, pode assinar minha newsletter aqui.

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