Aquele velho cheiro de livro novo

Leandro Marçal
Revista Subjetiva
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8 min readAug 4, 2018

Uma chuva chata deixou o dia mais lento. Daqueles em que os motoristas parecem não raciocinar direito ao emitir comandos. Com eles, os carros se movimentam, param, seguem adiante. Mais lentos que de costume. Subi a serra rumo ao primeiro dia da 25ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo depois de um leve atraso no ponto de encontro. Sorte que meu amigo de camisa preta, a irmã do meu amigo de camisa preta e o outro amigo de casaco cinza entenderam. Eu avisei por mensagem, para evitar desencontros e esperas.

Em pouco mais de uma hora e meia de trajeto, falamos dos últimos meses, dos amigos mais próximos, hoje distantes, do meu primeiro livro, do próximo, dos relacionamentos que vêm e vão, dos empregos — que também vêm e vão –, da família. Esta fica.

Era inevitável molhar a roupa e os cabelos — para quem os têm — no caminho entre o estacionamento e os 75 mil m² do centro de eventos Anhembi Parque para conferir de perto os 197 expositores. Ali, tentam nos vender o que há de mais diverso na produção literária, entre ficção, reportagens, biografias, autoajuda, banalidades, infantis, bizarrices impressas. As 1.500 horas de atividades entre os dias 3 e 12 de agosto contam com um investimento de R$ 32 milhões, além da presença de 291 autores nacionais e 22 internacionais.

Foto: Arquivo Pessoal

Em seu 50º aniversário, o evento estampa o conceito do livro como “a principal fonte de conhecimento em meio ao turbilhão de estímulos e canais de acesso a conteúdos que a tecnologia proporciona”. Não foi à toa o slogan “venha fazer um download de conhecimento” entre as principais informações do evento.

Nelas, falavam de espaços como a Arena Cultural BIC, Arena de autógrafos, Espaço do Saber Microsoft, Cozinhando com Palavras, Salão de Ideias, Biblio SESC, Auditório Edições SESC São Paulo, Espaço Infantil Tenda das Mil Fábulas Correios, Espaço Cordel e Repente, Espaço Autógrafos Suzano, Espaço Papo de Mercado.

As presenças internacionais de A. J Finn, Victoria Aveyard, Soman Chainani, Yoav Blum, Lauren Blakely e do Sharjah, polo de educação dos Emirados Árabes Unidos, também eram destacadas. Nomes como Mauricio de Sousa, Mario Sérgio Cortella, Ziraldo, Luiz Felipe Pondé, Fernanda Montenegro, Antonio Prata, Miriam Leitão, Carolina Ferraz, Thiago Castanho, Helena Rizzo, Pam Gonçalves, Julián Fuks, Maria Rita Kehl, Luiz Ruffato e a trupe do Casseta e Planeta não são para qualquer um. Bate-papos, palestras, coisas assim. Eventos como o Papo de Mercado e a 1ª Jornada Profissional. Enfim, há muita coisa a se fazer pelos próximos 10 dias.

Quando precisamos da combinação entre letras e números para nos guiar em um ambiente, como num jogo de batalha naval, é sinal de sua real grandeza. O Espaço Cordel e Repente, por exemplo, fica no corredor H. Lembrei bem dele por causa do almoço, quando a irmã do meu amigo de camisa preta perguntou se havia algum pastor falando um pouco mais alto. Não era, ainda que naquele pavilhão gigantesco houvesse mais que uma terra prometida. O encontro do som do improviso de um lado, com uma palestra do outro, distorcia os bons sons para quem comia lanches. Um combo de X-Salada e batata frita.

– Não queria vir porque quero levar o mundo. Isso aqui é um parque de diversões — ouvi do meu amigo de camisa preta, entre uma mordia no sanduíche e um gole no refrigerante.

Foto: Arquivo Pessoal

De fato, se houver céu, ele deve ser coberto de literatura. Eu e meu amigo de camisa preta nos separamos da irmã do meu amigo de camisa preta e o outro amigo de casaco cinza. Alternávamos conversas sobre livros novos e aquelas pessoas que, se não os leem, viraram personagens em outros planos bem antes do tempo, segundo a ordem natural das coisas.

Gente parava nos diversos estandes para folhear livros, sorteios de brindes em uma miniatura de relógio musical dos programas do Silvio Santos (ele também tinha a foto estampada para anunciar sua biografia em um dos estandes, não lembro qual), outlets com livros a dez reais, sebos sem medo de usar este nome tão brasileiro quanto charmoso, comida mais cara que exemplares em promoção, carrinhos de sorvete posicionados estrategicamente entre um corredor e outro, Jane Austen dividindo uma estante com a obra Se nada der certo até os 30, você casa comigo?, um cartaz da Biblioteca do Exército apelando à tradição presente em suas produções.

Foto: Arquivo Pessoal
Foto: Arquivo Pessoal

Muitas coisas chamavam atenção. Dava para se sentir numa daquelas excursões com um guia indicando os próximos passos da trilha. Não havia bússolas para nos guiar quando passamos pelo mesmo estande duas vezes. Os pisos amadeirados, com vidros ou acrílicos chamativos nos indicavam o início da sedução para levarmos um ou outro exemplar. Nos corredores, um chão acarpetado e comum.

Foto: Arquivo Pessoal

Meu amigo de camisa preta estava determinado: queria levar um livro motivacional, o recém-lançado O sol na cabeça de Geovani Martins, e mais um que não lembrava o nome. Era da Agatha Christie, tinha uma capa alaranjada e lhe chamou atenção em uma viagem recente com a irmã. Precisamos do Google para descobrir o Cem gramas de centeio como seu tão desejado romance policial da vez.

Entre uma parada e outra na missão de encontrar tais obras, me deparei com um bom número de mulheres com cabelo e rosto cobertos. Por religião, acho. Já que falei da espiritualidade, o espiritismo e o cristianismo tinham lá seus espaços com obras dedicadas exclusivamente a esses temas.

Ganhei um marcador de livros com heróis da Marvel ao passar pelo estande de histórias em quadrinhos. Descobri os diversos livros de poderes entre os motivacionais: O poder do hábito, O poder do agora, O poder dos quietos. Notei, também, que os livros eróticos, herdeiros dos 50 tons, se misturam às outras publicações, mas também se escondem. Pode ser algum constrangimento de ter as capas com a sensualidade de abdomes trincados, homens e mulheres se insinuando em capas azuis claras com imagens de gotas não muito inocentes ao andar por aí.

E se a Bienal coloca o livro como o pai da comunicação escrita, com toda autoridade sobre os meios digitais, não poderia deixar de ter a experiência de folhear publicações de YouTubers. Parecia haver uma linguagem simples na diagramação, que permitia poucas linhas por página. O estilo internético fazia das letras grandes um simulacro de videogame. Muitas fotos e QR Codes ocupando boa parte deles. Eu, que mal consigo sincronizar os códigos de barras com o leitor digital do celular para pagar boletos, não me adaptei.

Passamos até pelo estande da RedeTV! e de algo sobre moda sustentável, sem que achássemos o misterioso livro da Agatha Christie. Mas, não éramos personagens de uma trama misteriosa, cheira de reviravoltas até encontrar o livro nas últimas páginas. Ele só aparecia em boxes completos, muito caros para o orçamento do meu amigo de camisa preta.

Com mais que uma obra motivacional na mão, ele desistiu do romance policial quando a editora que o publica informou não ter nenhum exemplar avulso. Lamentamos. Ao lado do estante, estranhei ver pessoas formando fila para tirar uma foto dentro de uma maleta, com cartazes em inglês, indicando a referência a um livro e filme.

O ânimo era nítido, menos quando as expressões se fecharam diante da senhora de óculos, que furou fila para tirar uma selfies na tão concorrida mala. Eu não fazia a menor ideia do que se tratava e me aproximei.

— Olha, moço, essa maleta é de um filme. Sim, é. E um livro. Eu acho. Na verdade, não sei, mas gosto tanto de tirar selfies que resolvi ir lá também. Agora, deixa eu ir, não tinha percebido que furei fila, desculpa.

Foto: Arquivo Pessoal

Foi o atendente de camisa vermelha quem me informou. Animais fantásticos e onde habitam era a obra que atraía o frisson dos flashes. Alguns fãs chegavam a vestir algo como uma mistura de chapéu de aniversário e viseira de vôlei de praia, cobrindo suas testas com orelhas de alguma espécie animal por mim desconhecida apontando para cima.

Fazia frio lá dentro. Mal dava para sentir o cheiro de papel novo dos livros que ali nos aguardavam. O odor esperado pelos viciados em letras se escondia, só beneficiava quem os levasse para casa depois de coçar o bolso.

Quando meu amigo de camisa preta avisou a irmã do meu amigo de camisa preta que dava a missão por encerrada, voltamos a pegar chuva entre o centro de eventos e o estacionamento. A9. O lugar para guardar carros era outra batalha naval. Não afundamos, usei meu caderno de anotações também para não me perder. Tenho problemas geográficos.

No caminho de volta, a irmã do meu amigo de camisa preta mostrou seus livros sobre feminismo e políticas, por lá adquiridos. O outro amigo de camisa cinza, sempre lacônico, usou de poucas palavras para comentar que priorizou publicações de sua área de formação.

Pensei nas obras de ficção e filosofia que folheei por lá. Preciso conter a ansiedade e a compulsão por livros novos. Tenho mais de 20 na lista de espera em casa, fora as versões digitais. Todos cheiram a papel novo ainda. Menos as versões digitais. Terei mais alguns dias, não posso gastar meu (raro) dinheiro.

Ao me despedir do meu amigo de camisa preta, a irmã do meu amigo de camisa preta e o outro amigo de camisa cinza, prometemos não perder contato outra vez. Há tempos não nos víamos. Nos próximos dias, vou perguntar sobre o que achou das compras desta sexta-feira. Os livros, além de expandir horizontes, nos aproximam.

Foto: Arquivo Pessoal

A Revista Subjetiva está cobrindo a 25° Bienal do Livro de São Paulo, acompanhe nosso site para mais informações e novidades sobre o evento!

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Leandro Marçal
Revista Subjetiva

Um escritor careca e ansioso. Autor de “De Letra: o futebol é só um detalhe” e “No caminho do nada”. Cronista no Tirei da Gaveta (www.tireidagaveta.com.br).