Arvo Pärt, 24 Prelúdios para uma Fuga

Jil Soares
Revista Subjetiva
Published in
8 min readMar 21, 2020

Dorian Supin

Poster — Divulgação

O documentário “Arvo Pärt, 24 Prelúdios para uma Fuga”, dirigido por Dorian Supin, cineasta russo, é um registro da vida e da obra de Arvo Pärt, compositor estoniano de música erudita, que em meio a uma crise pessoal bloqueia sua criatividade. Essa crise fez com que o compositor renunciasse ao Serialismo — Escola de Música resultante da recriação que se dobra na não repetição das notas em uma Escala Musical, em que o lapso de tempo, o intervalo, os entre tons são lugares de fendas, reentrâncias, fragmentos de unidades que espelha semelhança, mas reflete diferença: Ressoar polissêmico de Produção de Sentidos.

É a partir daí que Arvo Pärt se dedica à Escola de Música Minimalista. Diferente do Esquema Serial, o minimalismo musical tem como característica principal a repetição exaustiva, inferida pela nota. É como se buscasse uma resposta, um elo que se desgarrou de suas origens.

O filme de Dorian Supin é dividido em 24 sequências separadas, que nos insere nas memórias, processo criativo, seminários e concertos do compositor. O minimalismo para Arvo é extático, e seu frêmito retém no convexo o etéreo, de forma à cingir o Espiritual em sua gênese. Ecoar na tentativa de se encontrar.

Still da Sequência “Primeiro Concerto”

As imbricações do urbano estão mapeadas em suas composições, porém, este não é o seu elo. A impressão é de que o caminho que Arvo percorre através de sua composição é uma busca das primícias sonoras das coisas. Assim como os vultos expressos nas esculturas de Brancusi, escultor romeno, que perseguiu obsessivamente a forma e essência primeira da matéria, ou até mesmo o relato do próprio Arvo, ao narrar de forma sublime o seu primeiro concerto na Escola de Música Infantil no município de Rakvere — Estônia, entre 1945 e 1953; em que ao se sentar no banco para tocar piano, seus pés não alcançavam o chão. Piano este que fora queimado alguns anos depois de Pärt, deixar Rakvere.

A simplicidade de suas composições é concatenada a partir de uma insistente persistência da escuta — processo que nos faz perceber com os olhos o mistério hermético que se reflete no jogo das assimilações — que o próprio compositor encontra e faz com que esses elementos se relacionem em um eterno prosear entre a música e a natureza: o barulho gotejante da água, o farfalhejar das folhas como lâminas cortando o vento. Toda essa trama urdi e emaranha o meneio sonoro desse espelho, como um reflexo abstrato de um indício metafísico consubstanciado em música. Seria a definição do ideal de “Silêncio Perfeito” captado por Dorian, em visita ao Conservatório de Tallinn. Lugar em que Arvo Pärt estudou no período em que abrange o ano de 1957 a 1963, tendo como professor o compositor estoniano Heinno Eller.

A busca por essa essência que lampeja e se esvai em alumbramentos é o registro que todo artista persegue encerrar para que o dar-se a conhecer não seja ou permaneça um fragmento de uma cópia caliginosa. Ao que Arvo diz: “Compararia a minha música a luz branca, que contém todas as cores. Apenas um prisma pode dividir as cores e fazer com que apareçam; esse prisma pode ser o espírito do ouvinte”.

“O Toque”

Still da sequência “ O Toque” Divulgação — Site: Making Off

De forma semelhante, Dorian, persegue essa essência ao acompanhar Arvo Pärt com sua câmera durante três anos, para que os 24 prelúdios registrados por ele, na sua simplicidade tenha resiliência de uma epifania ascética e luminosa.

Podemos perceber enquanto espectador na primeira sequência dos 24 prelúdios, Dorian nos conduzir ao pluriverso minimalista arvopartiano ao captar sob a luz natural do sol entrando em seu quarto, Arvo simular tocar um violino suspenso em suas mãos, enquanto assobia a possível melodia do movimento que acabara de criar para a sua peça musical. O gesto prossegue como se o instrumento houvesse imanência pervadida de uma alegoria mística.

A peça é Oriente e Ocidente, fruto dos estudos do Cantochão Gregoriano, prática monofônica de canto, utilizada desde o início da Idade Média com os Monges Reginaldinos e por cantores nos rituais sagrados. Esse canto foi desenvolvido durante os primeiros séculos do cristianismo, influenciado possivelmente pela música da sinagoga judaica e certamente pelo sistema modal grego.

Durante todo o filme iremos perceber de forma mais intimista o quão dificultoso é para Arvo falar sobre si, talvez por se tratar de um indivíduo constituído por experiências de memórias não verbais, e que a música o traduza de maneira mais completa, sem as elipses verbais que ele tropeça ao tentar se fazer entender em explicações durante apresentações de seminários e/ou nos ensaios com os músicos sobre como alcançou determinado resultado em uma peça musical, durante seu processo criativo.

“Primeiro Concerto”

Iremos testemunhar desse fato ao vê-lo narrar as primeiras impressões de suas lembranças de quando ele tinha dois anos de idade, e a sensação de que em um dia de domingo uma luz incidiu em um canto do teto da sala de estar, de cor vermelha, por conta do papel de parede, reverberando todo o ambiente. Ele diz que não sabe o que isso significa, apenas lembra como se fosse um dia de domingo.

“Für Alina”

Fonte: music in moviment

Durante o Auftakt (Prelúdio) — Seminário para estudantes de música no Teatro e Museu de Música da Estônia, tentando explicar o processo criativo de Für Alina, (1976) o primeiro trabalho em estilo Tintinnabulum (do latim; um sino) -, Arvo Pärt explica aos presentes ali, que o conceito de Für Alina, é precedido de uma “…neutralidade e da dureza da nota que causa a sensação de duas pessoas que parecem se encontrar, mas não se encontram”. Desencontro entre forma e melodia na unidade de cada som. “Futuro e passado fora do tempo,” que excede a fisicidade do objeto-piano. O estilo criado por Arvo Pärt é trabalhado com poucos elementos — somente com uma ou duas vozes, construído a partir de um material primitivo — com acorde perfeito, com uma tonalidade específica. As três notas de um “Acorde Perfeito” são como sinos. Por isso Arvo conceituou de “tintinnabulação”. Pärt diz que “…a mão do maestro contém todas as notas e que ao levantá-la satura a essência de todo o trabalho”. Talvez aqui caiba arriscar sinalizar a imagem desta fala como o momento mais belo do documentário — pois, como dotado d’um encantamento, a personificação da música tingisse um estado imatérico ou a manifestação sonora da matéria escura, como um meio — fio: tensor transcendente da criação.

Fonte: Youtube

Não tem como não lembrar de John Cage, maestro norte-americano e a sua Ode ao Silêncio — 4’33, quando Pärt discorre sobre o processo criativo de Für Alina. Explicação essa que Arvo Pärt diz “…ser complicada e que ele mesmo não se entende bem. E que só tem uma ideia do que está querendo dizer, e que está sempre buscando por isso. Às vezes, vem fácil, outras simplesmente não vêm”. Sentimento que o faz compreender a necessidade de começar do zero.

“Solidão”

Na sequência, intitulada “Solidão”, caminhando por entre pinheiros com Eleonora Pärt, a sua esposa, Arvo sinaliza durante o caminho sobre a existência de uma casa com teto curvo ao que o leva a declamar um poema que lembra uma pintura cubista, sobre um “homem curvo, que morava sozinho em uma casa curva” e que tudo na perspectiva do olhar desse homem tornava-se curvo. Tudo isso revisitado por Pärt talvez seja a razão de esse lugar trazer à sua memória a lembrança do ano em que fora expulso da União dos Compositores da Estônia Soviética, 13/11/1979.

“Sete Minutos — Cecília -Virgínea Romana”

Still da Sequência — “Cecília”

“Enquanto ressoavam os concertos profanos das suas núpcias, Cecília cantava, no seu coração, um hino de amor a Jesus, seu verdadeiro Esposo.”

(Atas de Santa Cecília)

Eleonora Pärt é uma figura crucial durante todo o documentário, e ela está ali não apenas como fiel auxiliadora, mas também como executiva, curadora e co-produtora dos trabalhos de Arvo. Ela, assim como Tallinn, é seu “Tomate com Açúcar” (ao revisitar a Estônia, depois de 13 anos de exílio, relembrando a sua infância em 1993, preterir o sal ao morder um tomate com açúcar). É a sua floresta e seu mar, a Santa Cecília a qual devota o silêncio de suas notas, como preces nupciais, e como sonho, rompendo o remanso n’uma nota suspensa d’um movimento em repouso.

“Servente”

Still da Sequência “Servente” Fonte: Making Off
Still da Sequência — “Servente” Fonte: Making Off

Homem de mente inquieta e sensibilidade senciente, nada se furta à sua escuta. A exemplo, em um dia frio, enquanto espera o “bonde” em frente à sua casa, Pärt conversa com um rapaz que está varrendo a rua e o indaga: “Como um compositor deve compor sua música?”, ao que tomado pelo Absurdo, o homem responde: “Que pergunta! Acho que ele deve amar cada uma das notas sem exceção.”. Arvo Pärt reflete sobre “Amar todas as notas” e conclui que “é assim que um compositor deve ver a música. Esse conhecimento abre as portas para um universo totalmente novo. Como atingir esse grau de conhecimento?” Pergunta ao público seleto no F. Schorlemmer Culture Forum em Wittenberg — Alemanha, 2000.

Qual o lugar da provocação em Arvo Pärt? Qual a trajetória que se desloca o conhecimento? Estaria a espiritualidade das coisas maniatadas à austeridade apórica da égide acadêmica ou encerradas em cânones a ser servida em um banquete distinto aos heráldicos da sabedoria?

“…O autor não deve se curvar durante o aplauso.”

Still sequência — “Gabinete de Tabaco” Fonte: Making Off

“…Interessante, fumaça, fumaça.” Eis o Gabinete de Tabaco” (contém mais de 300 cadernos, onde estão grafadas as suas anotações musicais de 1975 a 1985. O gabinete fora comprado de um fabricante de cigarros, por isso tem um cheiro peculiar).

Autopsiar a música é como manter a “comunicação entre dois amigos… Exercícios para combater pensamentos maus. As palavras salvam você, aprender a perceber o que as palavras dizem. É como aceitação, você procura aqui e lá, para entrar em contato com o mundo material. Você busca a vida e o frescor. A relação com a palavra é a mesma. Você olha para ela de todos os ângulos. Mas você não pode segurá-la. Você não pode capturá-la…Interessante, fumaça, fumaça!”

“Eu queria me tornar um compositor, mas de um tipo diferente de todos os que eu ouvia no rádio. Isso era um segredo meu!”

There is your Heart — My heart’s in the Highland (2000)

Jil Soares

--

--

Jil Soares
Revista Subjetiva

Bacharel em Cinema pela UFBA. Colaborador: Revista Subjetiva e Revista Impublicável ex - editor de conteúdo da Revista de Arte GRAVIDADE