As águas de março

Leandro Marçal
Revista Subjetiva
Published in
2 min readMar 19, 2019
Repordução

Elis Regina e Tom Jobim usaram de sutileza, há mais de 40 anos, para cantar a força das águas desse mês. Força e crueldade.

Não seria estranho encontrar uma teoria da conspiração provando que os noticiários desses 31 dias são uma reprise dos anos anteriores. Vemos relatos de enchentes, prejuízo total com móveis de casa, pessoas arrastadas por medo de perder o carro, água pelo joelho, buracos escondidos num líquido marrom travando o trânsito.

E nem é preciso uma chuva com gotas grossas de machucar a pele. Bastam poucas horas de lágrimas celestes para as mesmas ruas, nos mesmos cantos, no mesmo mês, serem assunto pelos mesmos motivos.

Enchente, transtornos. Gente se arrisca, gente faz piada. Com os prédios cada vez mais altos e a falta de planejamento invadindo os bairros mais endinheirados, as anedotas sobre botes perdem a graça e viram indignação. Quando a leptospirose passava em frente apenas às casas à margem do centro, as águas de março eram mais divertidas.

Nas entrevistas, velhos engravatados culpam os fortes tormentos das nuvens nesse período e seus capatazes balançam a cabeça. Como se as previsões do tempo já não nos alertassem há décadas. De um jeito capaz de nos convencer que não há o que fazer, só a lamentar. Aparentando falta de culpa pelas obras atrasadas e desrespeito a quem é seu patrão (mas não percebe) e outros tantos motivos que os cargos eletivos jogam para baixo do tapete molhado.

Pipocam vídeos filmados com celulares de última geração. Porque não nos importamos com o esgoto desfilando à porta de casa, nem com o lixo arremessado na calçada, transformando bueiros em porta de balada. Deixa isso para lá, podemos filmar na horizontal e mandar para a TV.

E sem perceber vão se passar meses, a temporada das águas vai embora e junto com ela as conversas sobre necessárias obras de drenagem, planejamento urbano, estratégias para escoar as águas, limpezas, tubulações etc etc etc.

Assim, no dia de caminhar até uma escola com o chão poluído de santinhos com a foto de demônios, esquecemos aqueles sustentados pelo nosso trabalho e impostos. Eles não precisam de baldinhos para tirar água da sala, nem levantam sofás, geladeiras e guarda-roupas com medo de perder tudo.

Os vídeos de enchentes e seus cúmplices serão ignorados no papo furado dos dublês de salvadores da pátria nas próximas eleições. E na outra, e na outra, e na outra.

Gostou? Deixe seus aplausos — eles vão de 1 a 50 — e seu comentário!

Siga nossas redes sociais: Facebook Instagram Twitter

Divulgue seus textos e participe do nosso grupo no Facebook!

Leia a última edição da nossa revista digital!

Faça parte do time!

--

--

Leandro Marçal
Revista Subjetiva

Um escritor careca e ansioso. Autor de “De Letra: o futebol é só um detalhe” e “No caminho do nada”. Cronista no Tirei da Gaveta (www.tireidagaveta.com.br).