As cicatrizes que eu escolhi

Gabriel Martins
Revista Subjetiva
Published in
3 min readDec 13, 2019

Eu fiz minha primeira tatuagem com 24 anos. Mas eu queria fazê-la desde meus 16 anos, quando eu ouvia ininterruptamente o disco Ray of Light da Madonna no som do carro do meu pai. Na época, enquanto assistia os programas da MTV, eu imaginava uma vida em que meu álbum favorito era o melhor cartão de visitas que eu poderia oferecer para quem se atrevesse a me conhecer, ou decifrar. E eu fiz muitos amigos assim. Minha primeira tattoo foi escondida dos meus pais e a desaprovação da minha mãe foi traduzida em uma única frase:

“Eu gostaria de saber mais coisas sobre você.”

Depois disso, talvez pra me adequar a estranheza de aceitar quem eu sou, uma tatuagem da moda, facilmente definida hoje como algo normativo e padrão, foi minha escolha para rabiscar de novo. Essa estranheza virou um enigma que eu acreditava que só eu mesmo conhecia a ponto de tatuar que ninguém me conhecia ou me decifrava. Que engano!

- O que significa esse desenho novo.
- É uma frase, mãe. Nobody knows me.
- E o que quer dizer isso?
- Significa “ninguém me conhece”
- Até parece, eu te conheço, sim!

E pra exaltar minha vontade de sair da barra da saia dela, tatuei um peixe saltando do aquário uns 2 meses depois que saí de casa e morei sozinho pela primeira vez. Uma onda descontrolada em alto mar refletiu a primeira vez que morei longe casa e perto do mar. Logo eu que nem sei nadar. De fato, ninguém me conhece — pelo visto nem mesmo eu.

Nessa ilha, os amigos que fiz me lembraram que esse lance de sair de perto de casa só funciona se você tiver com quem contar. E longe de casa, eu perdi aquela de quem eu fugi, como peixe rebelde que não se contenta com o aquário da casa dos pais, até que reencontrei uma parte dela quando deixei na pele um lembrete de quem minha mãe foi e ainda é pra mim.

Um dia depois de conhecer o amor da minha vida, um desenho de um barco e sua âncora que eu já ensaiava fazia tempo cicatrizou no lado esquerdo do meu peito uma vontade há muito abafada de ser encontrado, de ser visto, de ser fisgado. Logo mais, fisgado estava, eternizamos juntos de um jeito muito meu e dele. E assim meu amor ficou impresso na pele — só pra gente não se esquecer.

Depois que me aceitei, tatuar o meu personagem favorito que tinha me ensinado que era totalmente possível ser homem e ser sensível ao mesmo foi mais que uma afirmação, foi a chance de encontrar de novo o menino que minha mãe conhecia tão bem mesmo quando eu não entendia bem quem eu era.

Vendo a uma certa distância, que a idade me permite e a terapia me encoraja, eu vejo que todas essas cicatrizes escolhidas foram frutos de quem eu estava me tornando e um reflexo de quem eu já fui, de quem alguns não sabem que fui e de quem eu nunca deixei de ser.

E faz muito tempo que minha tatuagem “nobody knows me” é apresentada como ironia para quem se interessa saber.

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