As Hiper Mulheres

Jil Soares
Revista Subjetiva
Published in
4 min readJul 30, 2021

Dir. Takumã Kuikuro; Carlos Fausto; Leonardo Sette

Provocação Criativa: O texto surgiu da Provocação Criativa da Escola Itaú Cultural como parte da atividade de Seleção para a formação Crítica Cinematográfica // Revisão Textual: Contista IG: @gueunogueira // Poeta IG: @clauzie.ferreira

Suporte Textual de Pesquisa:

Moara Brasil

Pôster Divulgação

*O Documentário completo está disponibilizado no @youtube e na plataforma do Itaú Cultural

“Ainda não é broto, se quer argilou pensamento em fumaça de orvalho. O barulho vindouro além, não é descida de anjo, foi soluço das Deusas… Barro. Jejuar as imagens na luz, nelas abrir decalques.” (Jil Soares, 2019)

Doc. As Hiper Mulheres — Dir. Takumã Kuikuro; Carlos Fausto; Leonardo Sette

O Cinema de Insurreição Molecular de Takumã Kuikuro

A imagem é de um Brasil antropófobo, arisco e silvícola, esboçada nos documentos iconográficos de sua “história”, por meio de expedições científicas, no período das “descobertas”, criadas por artistas viajantes europeus. Representações impressas no espectro estético de um renascentismo bucólico, edênico e sobretudo, selvagem, deu-nos essa ideia de que, se “assim era, por isso fora registrado”: é a narrativa que por muito tempo perdurou na nossa memória em relação aos povos indígenas, principalmente nos documentários que retratam temas antropológicos e a vida em sociedade.

Still — Plano Geral // As Hiper Mulheres

A fotografia acima (Plano Geral) foi manipulada em sua estética por meio do filtro negativo da cena do documentário “As Hiper Mulheres”. O filtro negativo(pré)tensiona e reafirma no registro imagético a continuidade dos movimentos anunciados nas (re)escritas dos orius insurgentes da atualidade, determinando e legitimando o nascimento de uma nova ‘fé pública’ evocando e executando uma elipse visual dialética na agoridade que nos atravessa neste novo cartório das imagens.

Os valores cromáticos são invertidos como possibilidades de “entrelugar”, no sentido de ampliar vozes e corpos que foram e são negados na história da curadoria e arquitetura das imagens. Fendalizar por uma contingência estética, um campo fora do real, como disparo propulsor de construção, de um real fabulado em suas dobras, os eidos de uma nova narrativa imagética do real, que agora se apresenta de forma irreversível e inacabada em sua etnografia, consubstanciada de memórias coletivas, pelo viés da tradição oral.

Força e Celebração da Sexualidade da Mulher Indígena Kuikuro

Na política de regência das imagens do corpo feminino que fora construída e apresentada até então, o documentário demarca, tensiona, e problematiza a composição deste erótico indígena, ao nos expor pelo viés do gênero documental observativo, que a guerra dos sexos ali na aldeia Kuikuro, destoa completamente dos enquadramentos que as narrativas audiovisuais e publicitárias perpetuaram na nossa gramática ocidental das imagens.

Ainda que a aldeia Kuikuro comungue de um jogo sexual, onde a métrica escalar flerte em certa medida com parâmetros ocidentais, não há violência na gênese gestual, pelo fato de suas experiências serem fundamentadas nas vivências do mito. A insinuação do corpo e da fala, toda ela, flana no sagrado, no rito, na liturgia, não há espaços que reverberem ações de caráter antropoceniadas.

A mulher xinguana é a força motriz, que intui do È ancestral um bicho-fêmea que (pré)videncia o fruir do não visto. Imbuídas de cornucópia oracular essas mulheres se ferramentam através da mística do seu (en)canto o fermento vital para a ordem de sua cosmogonia.

Trailler Oficial do Doc. As Hiper Mulheres

Entende-se aqui que é preciso poder de imanência para devir ser beleza. Pois cocar o fuste, é tornar-se divina. O sagrado acontece para a sua emancipação e autonomia, tanto para a sua sexualidade quanto para as regras de relacionamentos sociais na aldeia, diferente do sagrado enlatado ocidental, que maniata os corpos e a mente, conduzindo a nossa subjetividade a arqueamentos subalternizados.

Dessa forma, as novas produções do audiovisual indígenas, junto a outras ações de reparação, apontam uma Insurreição Molecular devolvedora dos Assombros Imagéticos produzidos pelas ausências do Poder Público, ante as práticas fascistas que persistem e insistem em nos desertificar, através do Estado, com suas ações homogeneizadoras e mercadológicas nos processos de engendramentos forjados no biopoder e na necropolitica, com o intuito de modelizar nossas subjetividades e nos dominar ideologicamente por meio de narrativas espúrias — a grilagem do visível.

Pôster Divulgação

A atual produção artística, respectivamente realizada por povos indígenas, é uma dissidência visual, rizomática e ancestral, literalizada na oralidade, que tensiona e evidencia as veias abertas de um passado diacrônico, ou seja, o passado se (re)fazendo no agora. O reflexo aqui não acontece no Absurdo Existencialista Narcísico do artefato, o seu devir se constrói sob as águas e não no artifício do espelho. A imagem é captada de forma insubordinada, bruxuleando esse novo sujeito, que se torna insurrecto.

A construção do visível, aguçada no documentário, nega em partes toda a intenção ficcional da realidade e a performatividade de sua caracterização, que comumente se espectorializa no cinema documental contemporâneo.

O fato de a obra ter em seu escopo marcas da autorrepresentação, dilui por completo toda a forma e conteúdo, que possivelmente folclorizaria a memória visual atrelada aos povos indígenas. O cinema d’ “As Hiper Mulheres” aqui entendeu e se sensibilizou, enquanto voz, tradição e canto, protagonizando na sua retina as imagens que ali se apresentaram, de modo a potencializar vidas aldeadas em seu cotidiano e reivindicar o “direito à Ser História”.

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Jil Soares
Revista Subjetiva

Bacharel em Cinema pela UFBA. Colaborador: Revista Subjetiva e Revista Impublicável ex - editor de conteúdo da Revista de Arte GRAVIDADE