AS MÁSCARAS DA ABOLIÇÃO

No aniversário da libertação do povo escravizado no Brasil, o impacto da pandemia sobre as pessoas negras escancara a desigualdade racial do país

Ana Beatriz Rocha
Revista Subjetiva
6 min readMay 13, 2020

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Quase metade da população preta ou parda empregada trabalhou em postos informais em 2018, o número exato ficou em 47,3% (Foto: Fernando Frazão / Agência Brasil)

Maio de 1888 é um mês contado por muitos como digno de celebração. É comum que a Lei Áurea, regulamentação assinada pela Princesa Isabel, seja vista com bons olhos pelas crianças que estão começando a conhecer a história do Brasil. Finalmente, a escravidão estava abolida nas terras tupiniquins, e uma nova nação surgiria dali.

Maio de 2020, a pandemia de coronavírus assola o planeta e espalha lágrimas pelas vidas perdidas por onde a Covid-19 passa. Os riscos são muitos, a letalidade é altíssima e, a olhos nus, não faz distinção das vítimas. Mas são necessários recursos para tentar escapar do vírus, da morte, e da crise econômica que o isolamento forçado pode causar, e é diante desses obstáculos que a população negra continua sendo a mais afetada, e as “bênçãos” da abolição se perdem na dura realidade.

Um país que vivenciou quase quatrocentos anos de escravidão não tinha como sair deles ileso, e sem vítimas marcadas. A libertação das pessoas escravizadas não se deu por generosidade, ou apenas por pressões políticas externas. A história reverencia os abolicionistas brancos da época, mas as revoltas do povo negro durante décadas mostram uma luta incessante por liberdade, que não merece ter o protagonismo usurpado nos livros didáticos de hoje.

No fim do século dezenove, a população negra, recém liberta, se encontrava nas piores condições econômicas possíveis. Sem moradia, sem garantia empregatícia, as sobras foram os subempregos extremamente precarizados, o desemprego e a violência de um Estado que queria o preto pobre, preso ou morto.

Não houveram políticas públicas destinadas a manter sequer a sobrevivência de quem antes era escravizado, na verdade, o que se teve foi o incentivo à miscigenação com a vinda de imigrantes europeus para trabalhar no Brasil. A elite que tanto lamentou a abolição temia o crescimento da população negra por aqui, e fez o que pôde para barra-lo.

Segundo Danilo Santos, professor de história, ativista negro e membro do Fundo Brasil de Direitos Humanos “A fragilidade da abolição é que ela não foi feita pensando no bem da população que era escravizada. Se dependesse daquela elite sedenta por privilégios, até hoje haveria escravidão no Brasil, e esse negacionismo traz prejuízos até os dias atuais.”

Tiram-se as máscaras

A Casa Grande não conseguiu “limpar a mancha negra” do país como pretendia, negros e negras hoje representam 55,6% da população no Brasil, de acordo com o IBGE. Essa maioria quantitativa é minoria no que tange acessos e direitos, e segue lutando, em pleno século 21, para atear fogo nas senzalas pós-modernas. As heranças do longo período de desumanização são genocidas, a comunidade negra teve o acesso a educação de qualidade barrado desde o início, que atuou como obstáculo para obtenção de trabalhos melhores e bem remunerados.

A educação precarizada e o racismo institucional são grandes responsáveis pelas dificuldades enfrentadas hoje no mercado de trabalho. Ainda segundo o IBGE, quase metade da população preta ou parda empregada trabalhou em postos informais em 2018, o número exato ficou em 47,3%. Na população branca, esse índice ficou em 34,6%. No mesmo ano, a comunidade negra ocupou 64,2% do desemprego do país.

Os dados contam sobre um povo que segue à margem, tendo sua ascensão socioeconômica negada, e ocupando cargos que sustentam a dinâmica de vida das elites. É o caso das trabalhadoras domésticas, se no passado as mulheres negras trabalhavam arduamente para cuidar das casas das famílias brancas, hoje em dia o cenário não mudou completamente.

De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, as mulheres negras são 60% das trabalhadoras domésticas do país. São as que passam quase todo tempo do seu dia se deslocando às casas de família, onde se dedicam a vidas que não são suas e são submetidas, por vezes, a abusos e remuneração injusta. Apesar das reformulações legais, as noções de subserviência relacionadas ao povo negro se sustentam.

Quarentena seletiva

Em março deste ano os casos de contaminação por coronavírus no Brasil começaram a se espalhar, e logo veio a preocupação sobre as primeiras mortes por Covid-19. A primeira delas foi registrada no dia 19 do mesmo mês, uma senhora de 63 anos, hipertensa e diabética faleceu no Rio de Janeiro. A idosa trabalhava como empregada doméstica no Leblon, e sua patroa havia retornado da Itália e testava positivo para o novo coronavírus.

Ela não pôde ficar em quarentena, o isolamento social tão importante e indicado por profissionais da saúde e lideranças governamentais não é acessível a todos. Muitos trabalhadores e trabalhadoras, ainda que em serviços não essenciais, não foram dispensados de suas jornadas, e seguem se expondo ao risco de contaminação para garantir o emprego. Além disso, há os casos dos que se mantém em suas atividades informais por questões de subsistência.

Diarista em mais da metade dos seus 31 anos de vida, Ericka precisou continuar trabalhando em meio a pandemia para sustentar o lar onde vive com seus três filhos, em uma periferia da região metropolitana de João Pessoa. O conforto do pão à mesa tem tranquilizado os seus dias, garantia distante para muitas de suas colegas “pessoas próximas estão numa fase muito complicada, passando fome pela falta de trabalho, e isso acaba afetando muito”, a paraibana relata.

A quebra da quarentena pela sobrevivência não pode ser responsabilidade dos trabalhadores, sejam dos regulamentados, ou dos informais. O Estado racista e genocida sempre agiu como mantenedor da comunidade negra nas posições periféricas e subalternizadas da população, roubando até a segurança sanitária em momentos críticos como esse, onde os principais cuidados ficam em segundo plano. Em tempos de isolamento social, fazê-lo de forma integral se torna mais um privilégio de raça e classe.

Sem nome, mas com endereço

E foi aos poucos que o vírus trazido pelos que retornavam de viagens internacionais foi chegando nas favelas, atingindo as comunidades pobres. O último Censo Demográfico mostra que, nos dois maiores municípios brasileiros, São Paulo e Rio de Janeiro, a chance de uma pessoa preta ou parda residir em favelas e comunidades é mais que o dobro da verificada entre as pessoas brancas. O passaporte infectado da Casa Grande respinga o contágio nas senzalas atuais.

O alerta para chegada da Covid-19 nas favelas aponta para várias fragilidades de espaços esquecidos pelo poder público. Ainda no século 20, as favelas abrigavam pessoas negras que enfrentavam os desafios de uma sociedade racista que dificultava ao máximo a ascensão socioeconômica. Em meio ao cenário atual, questões estruturais como os espaços reduzidos que causam aglomerações, e o ir e vir do trabalho sendo mantido, potencializam a letalidade do vírus nas comunidades.

O Painel Covid-19 nas Favelas, atualizado pelo coletivo Voz das Comunidades, revela que o índice de mortalidade nessas regiões já ultrapassa 30% dos casos confirmados. Para a historiadora Tatiany Simas, essas mortes escancaram as inconsistências presentes no mito da democracia racial, “o que vivemos hoje é outro modo de escravidão, é a escravidão contemporânea, é a necropolítica. Permanecemos sob a mira de um desgoverno que decide quem vive e quem morre”, explica.

No Brasil, quando a economia entra em recessão, as vidas negras ocupam o epicentro do colapso. Efeitos de uma sociedade racista que há tempos iniciou sua contaminação. O 13 de maio não merece descarte, ele foi resultado de diversas lutas da resistência negra da época. Após a abolição, o povo preto passou a lutar por cidadania e direitos, e hoje esse dia simboliza o constante combate a essa estrutura opressora, até que devolvam toda dignidade roubada.

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Ana Beatriz Rocha
Revista Subjetiva

Jornalista, escritora independente e em eterno flerte com a poesia. Cada fragmento estanca a ânsia por liberdade que há em meu peito.