As mulheres que são invisíveis

Coletivo Aurora Maria
Revista Subjetiva
Published in
6 min readJan 30, 2018

Seria muito fácil para nós e suficiente para outros abordar questões relacionadas às mulheres somente de forma geral, ou seja, ignorando que a vida de cada mulher varia segundo a sua classe social e sua raça, conforme já expomos aqui. Mas a abordagem teórica do feminismo classista impede que se forme uma visão rasa, buscando a emancipação feminina juntamente com a libertação das correntes do capital. Por falta dessa percepção, muitos movimentos e ações em favor das mulheres acabam não sendo representativos e trazendo questionamentos superficiais. Temos uma concentração do discurso feminista nas faculdades, em manifestações políticas e em grupos bem instruídos que têm sua respectiva importância e motivo de existirem. Eles alcançam, porém, as mulheres que não são instruídas, politizadas e vivem em situação de vulnerabilidade financeira?

É importante lembrar que nós não temos somente o patriarcado como um princípio estruturador da nossa sociedade, subordinação das mulheres aos homens, mas também a divisão da população em classes sociais, que faz com que existam homens subordinados a outros homens, como mulheres subordinadas a outras mulheres. O fato de pertencer à classe social dominante é sinônimo de ter sucesso na vida, “ter dado certo”, devido ao mundo de ostentação e aparências a base de exploração e sofrimento alheio que o capitalismo cria. É a dominação política e econômica que permite explorar as classes subalternas. E para ser atingido pela desigualdade estruturada pelo capital, tanto faz ser homem ou mulher, proletário ou proletária, é só fazer parte do último nível dessa hierarquia; do grupo social que produz e não detém.

É verdade que o poder do homem atravessa todas as classes sociais, conseguindo manter sua supremacia masculina tanto entre mulheres burguesas quanto mulheres pobres. Porque, uma burguesa, que explora em virtude de sua riqueza homens e mulheres, pode estar sendo subjugada por outros homens, por exemplo, seu marido ou seu pai. Porém, o machismo sofrido não a isenta de estar fazendo parte de outra fonte de dominação, pela classe. E a mulher pobre? Bom, ela é a última nessa cadeia de dominação, sendo submetida ao homem rico, à mulher rica e ao homem pobre. Sendo assim, como podemos tratar então da mesma forma os efeitos do machismo na vida de mulheres pertencentes a classes diferentes? Demonstramos, sim, que ambas sofrem com as relações de poder e gênero que o patriarcado instala, porque são mulheres, e mulheres são sempre “o outro”. Nunca são enxergadas pelos homens como sujeito, e sim “um outro inferior”. Mas com certeza a desigualdade de gênero pode ser acentuada se existir o fator classe social, que já traz dificuldades por si só como falta de escolaridade, ausência do Estado, problemas econômicos e outra série de complicações. Sem esquecer, é claro, do fator raça, que também consegue intensificar e mais ainda quando combinado com a classe. Como expõe Grada Kilomba, a mulher negra consegue ocupar a posição de “o outro do outro”!

As mulheres das quais estamos tratando são invisíveis. As mulheres pobres e negras são esquecidas. Elas são menosprezadas. A mídia esquece delas quando tenta agradar com a ideia de um feminismo global para arrecadar, colocando em evidência matérias que tratam de desigualdade salarial, assédio e violências em um mundo burguês. Uma matéria recente de um jornal continha o seguinte título: “Assédio no trabalho dificulta a ascensão de mulheres no mundo corporativo”. Todas mulheres brancas, com altos cargos e boa condição financeira falando sobre um tipo de violência que atinge todo contingente feminino. O “ctrl + F” não acha a palavra “pobre”, e para “negras” eles deram três linhas. A nossa crítica não é uma tentativa de menosprezar o assédio que essas mulheres sofreram, e sim uma tentativa de mostrar que matérias como essa não contemplam, de forma alguma, a maioria das mulheres. A crítica está no espaço que não é aberto para as esquecidas! Por não dar visibilidade às mulheres que nem escolaridade possuem para ascender no mercado de trabalho ou nas que sofrem assédio todos os dias caladas por necessitarem do emprego para sobreviver. Assim como a mídia, o governo também não enxerga essas mulheres que sem dúvida residem em um bairro em que a ausência do Estado é de longe perceptível, além de serem atingidas por planos de gestão que precarizam ainda mais suas vidas. A oportunidade de passar no ENEM é uma lenda com as condições dadas pelo Estado, como um ensino público sucateado. É claro que o emprego vai ser prioridade. Como você vai plantar na cabeça de uma mulher que não foi incentivada ao estudo e sim ao emprego por necessitar de dinheiro, que deve cursar anos de faculdade na promessa de um salário futuro e incerto? É muito injusto julgar como uma preguiçosa que não quer melhorar na vida. Trazendo ainda a indústria, é importante perceber que ela se apropria do feminismo para lucrar, vendendo um esmalte ou um batom empoderador, como se ele fosse libertar a mulher pobre de um ambiente violento cotidiano.

Lutar em favor das mulheres dessa forma é fácil e não eficaz. Ainda existem várias mulheres por aí que não sabem o que é feminismo e que o movimento existe. Acabam passando pelo processo de formação desse feminismo burguês que é propagado pelas instituições supracitadas, ou pelo discurso deturpado de machistas que demonizam o movimento. O resultado dessa apresentação errada é a aversão ao que poderia vir a se tornar uma fonte rica de conhecimento. Será que essas mulheres sabem o que é machismo? Identificar a violência sofrida? Ou uma forma de se livrar de um ambiente violento? Será que elas têm noção das suas garantias, de seus direitos? Como a justiça pode intervir em situações de violência ou como ter acesso ao judiciário? Será que há uma reflexão política ou social nas suas conversas? Essas informações não lhes são dadas. E passar esse conhecimento não é fácil, pois as mulheres que não são enxergadas têm o fardo da tripla jornada, não tendo tempo para ideias, encontros ou manifestações, porque estão focadas em garantir a subsistência do lar. Principalmente ideias que não as contemplam, pois a ociosidade é permitida somente às mulheres burguesas. Os casos de assédio de artistas globais e machismo no mundo burguês as esferas de comunicação já se ocupam em dar visibilidade. Mas e as inúmeras e frequentes situações que a mulher negra e pobre vivencia? Quem se pre(ocupa)?

Fica claro então que o discurso de que somos iguais é mentiroso. O patriarcado-capitalismo-racismo servem às classes dominantes porque as beneficiam, garantindo ao homem branco e rico o seu poder de dominação-exploração, e logo após, à mulher rica e branca. Eles se utilizam da igualdade formal posta pelo Direito para justificar a nossa paridade, mas esquecem que é posto em prática, na verdade, um Estado de Direito seletivo, que escolhe quem vai ter garantias, quem será preso, e ao lado de quem a justiça estará. Assim, não há como negar que a partir do momento que o feminismo propor uma pauta em favor das empregadas domésticas, por exemplo, que atinja as suas patroas burguesas, estas não estarão mais tão a favor assim desse feminismo, porque a mulher burguesa não aceita que seus privilégios de classe sejam retirados. E como conciliar um feminismo onde uma parte acredita que nada deve ser feito quanto à exploração de classes se as mulheres pobres necessitam também da libertação do capitalismo para que tenham ao menos dignidade humana? Não tem como, pois, para se alcançar de fato a democracia, deve-se priorizar tanto a luta pela igualdade sexual e racial, quanto a luta pelo fim da exploração do capital. Se nós lutamos por igualdade, devemos reivindicar ela em todas as esferas. Dessa forma, não há combate pela emancipação feminina excluindo e esquecendo uma grande parte desse grupo que necessita que o conhecimento seja passado, que histórias semelhantes sejam compartilhadas para que se possa vencer o machismo de acordo com a situação em que se encontra. Cabe a quem luta verdadeiramente pela vida das mulheres sair da zona de conforto, alcançar as esquecidas e fazer com que sejam vistas. Sair um pouco da faculdade, levar o debate e a reflexão, ou talvez até manifestações, para lugares em que a desigualdade social se faz presente na tentativa de atrair a atenção seriam algumas opções. Não precisamos do empoderamento de mulheres, da ascensão do individual, e sim o empoderamento da categoria social por elas constituída.

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