As várias mortes em “K.: relato de uma busca”

Carol Vidal
Revista Subjetiva
Published in
3 min readJul 29, 2021
Foto: Carol Vidal

Em 1974, uma professora do Departamento de Química da USP é presa pelos militares junto com o marido e ambos desaparecem sem deixar rastros. A partir daí, começa a busca de um pai para saber onde está e o que aconteceu com a sua filha. Esse é o mote do poderoso livro “K.: relato de uma busca”, de Bernardo Kucinski.

Apesar de ser uma obra ficcional, a trama é baseada na vida do próprio autor, cuja irmã teve o mesmo destino da personagem. E é a partir desse prisma que ele escreve, dessa dor que marcou sua família. Porém, mais do que tentar apurar o que é verdade e o que é ficção nesse relato, o importante é a problemática que ele levanta: o silêncio em torno do desaparecimento de presos políticos, que se estende até hoje.

E o autor já deixa um recado para quem vai ler as páginas seguintes: tudo neste livro é invenção, mas quase tudo aconteceu. É essa constatação que faz desse livro uma peça tão importante para discutir esse momento tenebroso da história do nosso país — que tem suas raízes até hoje entranhadas na nossa vida.

A obra começa no momento presente, em que o irmão da desaparecida relata que, mesmo depois de tantos anos, ainda chegam correspondências para a irmã, “como se as cartas tivessem a intenção de impedir que sua memória na nossa memória descanse”. É uma eterna lembrança de um luto que não pôde ser vivido de forma completa, pois seu corpo nunca foi encontrado.

Esse início já dá o tom que a narrativa terá dali em diante: uma busca infrutífera por respostas. Já começamos a ler sabendo o fim da busca, e é aí que toda a perversão fica ainda mais evidente.

O pai, esse buscador incansável, é um imigrante judeu que, na juventude, foi preso por suas atividades políticas. É, portanto, uma pessoa já marcada pela violência de um Estado opressor. E, no novo país, onde esperava encontrar uma nova vida, vê o filme se repetindo de forma ainda mais trágica, agora com sua filha.

“K.: relato de uma busca” é um livro sobre morte, mas não somente a morte do corpo, a perda da vida, retirada pela ditadura militar. Em sua jornada em busca da filha, K. experimenta diversas mortes, o que torna o processo ainda mais cruel.

Eis algumas:

– Ele é um homem voltado para o estudo da língua iídiche e, de acordo com seu relato, vivia isolado dos “acontecimentos mundanos”. Por isso, desconhecia as atividades clandestinas da filha, chegando em certa parte a questionar se não era culpa sua a filha não ter confiado nele para confidenciar suas angústias e questões. Ele, inclusive, só soube que a filha havia casado por conta do desaparecimento dela e do marido.

– Ao começar a busca pelo paradeiro da filha, o protagonista é empurrado de um lado para o outro por desinformação e certa dose de maldade, uma vez que até chegaram a forjar uma suposta carta enviada a ele pela filha, como se ela estivesse refugiada em Portugal.

– Conforme o tempo foi passando e nenhuma notícia era promissora, ficava cada vez mais claro que a chance de a filha estar viva era mínima. Então, ele tentou realizar o ritual de enterro do judaísmo, o que não foi permitido, afinal, não havia corpo a ser enterrado.

– Como se já não bastasse todo o sofrimento, a filha foi demitida do seu cargo na USP por, pasmem, abandono de função.

Como já ficou claro, são muitas as perdas que uma pessoa pode enfrentar quando um Estado opressor usa como meio de governo a supressão de ideias contrárias por meio da tortura e da execução. Com a força que os movimentos de extrema direita vêm ganhando, leituras como “K.: relato de uma busca” se tornam cada vez mais essenciais para que, escancarando os crimes do passado, eles não sejam novamente normalizados no presente.

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Carol Vidal
Revista Subjetiva

Carioca que mora em Salvador. Escritora e podcaster que ama cozinhar (palavras e comidas). Conheça meu trabalho: linktr.ee/carolvidal_