Babados, xotes e xaxados

João Vitor Castro
Revista Subjetiva
Published in
4 min readJul 3, 2022
“Cangaceiros”, por fabian.kron em: CC BY-ND 2.0

Um véi abestado me parou pra falar besteira. Foi assim que Ciço e Maria, inda com as roupas amassadas do arraiá que festejaram na noite anterior, foram orientados a justificar a demora do passeio. “Se amem muito” era seu principal conselho. O sotaque empoeirado pelo tempo vivendo no Sudeste passadas décadas de que deixou Garanhuns num burrico, com chapéu de Lampião, não enganava, tal qual a alegria ao ver um casal com cheiro de cachaça e cara de pamonha que passeava de pé na areia-mar com camisa xadrez e chapéu de palha.

Embasbacado com fosse lá o que emanava daqueles dois, o velho Virgulino, aos 92 de certidão e um jeito de 60 e poucos que só a prosa de rua conservava, relembrava de todas as declarações verdadeiras e falsas que deu na vida, e de sua Rosinha, que na seca partiu, como ele, mas ela para o exílio da memória, com alegria açoitada. Neto de judeu e português, mas veterano de guerra no pau-de-arara, o velho cangaceiro era puro suco de um Brasil pós-colonial feudal. E o seu sorriso, estampado numa loucura-sã que só a fanatização da liberdade pode conceber, entregava uma leveza e uma certeza de que dentro em pouco largaria na rua toda a saúde que — para a idade — esbanjava, para desmontar-se de vez no colo da dama que o fez cavalheiro num dos muitos meses de junho que quadrilhou por Garanhuns, Caruaru, Juazeiro e Petrolina.

O passeio do casal acompanhava da areia a procissão dos pescadores a São Pedro, num micro-pedaço de Vitória que parecia se recusar — com toda razão — a desfazer de suas tradições. E, naquela manhã em específico, eles estavam satisfeitos, fosse o cuscuz da próxima festa salgado ou doce, amarelo ou branco, fossem os pés de moça ou de moleque. Fosse a próxima colheita a mais bonita, mandasse São Pedro mais ou menos peixes, chovesse ou fosse sol no sertão.

E o velho abestado lhes falava pelos cotovelos, enquanto, pelas cotoveladas, trancos e barrancos, terminava uma quadrilha naquela areia de praia de quase-pós-madrugada-pré-manhã. Mas ao contar de sua falecida Rosinha, seu falecido alazão, suas respirantes proles e seus derradeiros sonhos, os olhos encheram-se das águas que em sua terra inda faltam, e, não sem despedir-se, deu-se as costas ao casal.

E ao avistar a próxima quadrilha que se formava junto ao mar, Ciço olhou para o lado e viu a mulher que agora dizia que ama, com toda verdade que sua pupila dilatada não podia esconder. E ao chamá-la para dançar mais uma, se deu conta de que o amor que de novo nascera em seu peito esquentava mais que quentão, e era mais doce que canjica, pé de moça e bolo de milho, mais viciante que pipoca e mais gostoso que caldo verde. Não era a primeira vez que Ciço sentia isso, e essa repetição tornava tudo inda melhor. Amor, pra quem sabe amar, não tem final; só muda de procuração, público-alvo, logomarca, sócio-proprietário, slogan e endereço. Amor, pra quem sabe amar, é sempre novo e único e traz ares de novidade, por mais que se saiba que toda história de amor, como todo arraiá, é um pouquinho parecida.

E ao percebê-lo, Ciço viu que a vida não é um bolero, onde todos os pares se mantêm idênticos até o fim da dança. A vida é uma quadrilha. Os pares se juntam, se alteram, desencontram, reencontram, redesencontram. E vão dançando assim, com novas mãos, com novos rostos, com homens, mulheres, velhos, novos, de todas as cores, de todos os jeitos, de todas as origens e sotaques e sabores e timbres e tons e dons. Não dá dois passos pro lado, e pro outro, e volta pro eixo como num forró. Mas muda de direção a cada chuva e cada cobra, com coroas de flores e de espinhos, com passeios de damas e cavalheiros, e que se aperta e se aparta a cada alavantu e anarriê.

E, naquele baião, ele agora queria uma companhia em específico, porque uma quadrilha também é uma aposta. Todo casal entra na dança sabendo que, entre os caminhos da roça, os passeios e as coroas, podem acabar com outros pares. Mas é verdade que esses mesmos casais entram na dança alimentando a esperança de persistir por toda a festa. E como numa pescaria ou numa pulada de fogueira, só vê explodir o amor quem dos mandacarus se arma e entra sem medo nas trincheiras da alegria.

Ao final da festa, a chuva chegou no sertão. E o verde se espalhou na plantação, e o coração, guardado com Rosinha, pôde enfim voltar e encerrar a solidão daquele poeta abestado de beira de estrada, um zé-ninguém sem rumo e prosa, que muito falava e pouco sabia, com seu sorriso e a certeza de reencontrar, tão logo, a única que lhe sorriu alegre em toda noite que chegava, e que lhe aguarda numa das nuvens da chuva que chega para sorrir-lhe de novo, montada sobre o alazão que a falta d’água lhe roubara, a esperar, com um chapéu de Lampião, seu cangaceiro que saiu do sertão para fazer poesia num pau-de-arara da Rio-Bahia noutro tempo mais amargo.

Foi numa manhã de domingo. Nove badaladas na Catedral. Mais um reencontro nas alturas. Rosinha sorri ao ver seu abestado. Ciço sorri ao ver sua Maria Bonita. Cavalheiros e damas se descoroam, se dão as mãos e, terminado o túnel, acaba também o balancê. Em fila, casais se despedem no galope. Terminou mais uma festa na terra e outra festa no céu. Viva as fagulhas de São João.

--

--

João Vitor Castro
Revista Subjetiva

Jornalista, editor-chefe da Revista Brado e autor de “Refluxo” (Pedregulho, 2023).