Bagdad Café e a sororidade contextualizada

joice berth
Revista Subjetiva
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8 min readMay 14, 2019

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“Uma estrada deserta que vai de Vegas para lugar algum/Um lugar melhor do que você tem se encontrado/Uma máquina de café que precisa de conserto/Em um pequeno café perto de uma curva/Eu estou te chamando/Não consegue me ouvir?/Eu estou te chamando/Um vento quente e seco sopra através de mim/O bebê está chorando e eu não posso dormir/Mas ambos sabemos que a mudança está chegando/Chegue mais perto, doce libertação/Eu estou te chamando/Não consegue me ouvir?/Eu estou te chamando” I’m Calling You

Muitas feministas negras como bell hooks, Djamila Ribeiro e essa que vos escreve, vem contestando a ideia essencialista e mística de sororidade a muito tempo. Essa palavra, que vem do latim sóror que significa irmã, logo sororidade significaria irmandade, fazendo correspondência com o termo fraternidade que vem do latin fráter e é uma forma de tratamento usado para designar clérigos que ainda não são padres mas que já pertencem a alguma congregação religiosa. Sororidade foi apropriado para o contexto da luta feminista, mas ainda é completamente mal entendido e distorcido, sendo empregado constantemente como um “curinga” ou mantra evocado em situações nem sempre bem-intencionadas. A sororidade tem acobertado relações abusivas, negligentes e omissas entre mulheres e usadas como barganha silenciosa e conveniente quando se pretende levar alguma vantagem ou camuflar erros. Isso transformou um importante código de ética em um perigoso instrumento de poder que mais alimenta o sistema que pretendemos combater do qualquer outra coisa. Ter consciência de grupo é diferente de ter necessariamente uma amizade espontânea e solidificada. Amizade, diferentemente de respeito se constrói. Respeito é algo que devemos ter por qualquer pessoa. Mas infelizmente, a estrutura machiracista pautou que alguns são dignos de respeito enquanto outros não, sendo o critério utilizado para essa decisão a raça, o gênero e a classe social, respectivamente nessa ordem de importância política. Seria muito bonito que todas as mulheres fossem amigas e colaboradoras, mas é romântico acreditar que isso possa acontecer em um mundo sob atuação dessas estruturas de poder e dominação, que se vale inclusive, da desarmonia e distanciamento como mais uma carta na manga para alimentar as hierarquias sociais( desunir para dominar!). Mas a sororidade enquanto código de ética ou acordo de respeito mútuo é necessária, lembrando a cérebre Audre Lorde quando diz que:

“Não serei livre enquanto todas as mulheres também não forem, mesmo que as correntes dela sejam muito diferente das minhas.”

Isto posto, quero deixar aqui registrado o quanto sou amante da amizade, essa forma sublime e elevada de relacionamento. Ainda que nem sempre seja possível construir uma relação de amizade, a busca deveria ser sempre essa. E amo quando o cinema (the magic!) leva estórias de amizade para seu epicentro. Percy Adlon fez isso em Bagdá Café( título original ‘Out of Rosenheim’). Fez também com que eu refletisse e reavivasse uma convicção antiga: a amizade verdadeira é transformadora e altamente produtiva.

Dois casamentos estagnados desfeitos em um rompante de raiva pelas respectivas esposas, iniciam uma das estórias mais lindas da história do cinema. Uma primeira reflexão sobre os limites das relações amorosas, do casamento e da satisfação pessoal surgem nesse primeiro momento do filme. Precisamos aprender que não é necessário chegar a última gota de paciência para que uma relação termine. Aliás, término de relacionamento não significa morte do que foi vivido. Mas em nossa sociedade, estamos condicionados à crença no amor romântico, cujo uma das premissas clássicas é a de que a durabilidade é a prova do sucesso da relação, ignorando completamente que quase sempre, muitas violências, recalques e sufocamentos da individualidade, dos sonhos e projeto, principalmente das mulheres, são o preço que se paga para garantir esse “sucesso”. O filme é de 1987 e traz a construção de uma amizade comovente entre duas mulheres que, por caminhos diferentes, concentram em suas vidas problemas equivalentes. Uma é alemã Jasmin Münchgstettner (Marianne Sägebrecht, aparentemente bem-nascida, austera e de modos contidos e recatados. A outra é a Brenda (CC Pounder), uma afro-americana explosiva e estressada, com uma infraestrutura de vida precária e solitária, onde tudo se mantém tudo “de pé” às custas de sua sobrecarga física e psicológica. De saída, posso dizer que Brenda descreve o roteiro da vida da grande maioria de mulheres negras. Sempre nos atribuem um comportamento agressivo, quando na verdade desenvolvemos um comportamento pró-ativo para lidar com as diversas responsabilidades que são jogadas sobre nossos ombros desde a mais tenra idade. Esse comportamento vai na contramão dos estereótipos de feminilidade pautados pela cultura falopatriarcal e branca, que pautou no imaginário social a fragilidade e a submissão disfarçada de doçura, como atributos inerentes a condição biológica de mulher. Mulheres brancas são construídas para serem dóceis e cordatas porque esse é padrão de feminilidade eorocêntrico que não antagoniza com as pretensões de dominação do homem branco, uma vez que ela será “sua mulher”. Enquanto isso que mulheres negras são construídas para a fortaleza que deve suportar sozinha o peso do trabalho e das variadas formas de exploração, incluindo a sexual.

Mas Jasmine, curiosamente, passa a buscar a ruptura com esse modelo eurocêntrico de feminilidade. Quando abandona o marido na estrada empoeirada dos EUA também está se desfazendo de sua capa de princesa e saindo em busca de outras “vestes”. Jasmine busca por si mesma, ainda que traga na bagagem(a mala física que ela leva consigo) o acúmulo de uma vida cheia de aniquilamentos pessoais por conta do casamento. Isso é tão simbólico que a mala que ela carrega, não é a dela, por uma distração ela leva a do marido.

Quando seu universo insosso e melancólico se choca ao universo atribulado e exaustivo de Brenda, uma parede de vidro se forma entre as duas e o distanciamento é inevitável.

Brenda com a desconfiança que só tem quem tá cansado de apanhar1, diante de uma mulher branca européia e que carrega a primeira vista, todas as potencialidades opressoras do seu lugar de origem( as vestes típicas do seu lugar de origem), não tem outra possibilidade senão essa: desconfiar. A grande sacada é a do enquadramento com a posição das personagens, quando o encontro entre as duas acontece. Brenda sentada e Jasmine de pé, nos mostra contrastes importantes entre quem é (aparentemente) forte e quem é (aparentemente) frágil.

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A forte que sucumbe ao cansaço (Brenda) e a fraca que se coloca de pé em busca de novos horizontes (Jasmine).

Se Percy Adlon teve um suporte para a leitura racial da situação, eu não sei. Mas que sua obra nos conduz a um destaque para essas questões, é inegável.

Ainda assim, com essa colisão entre racismos, mundos diferentes e aparentemente distantes, desconfianças, receios, entre outras coisas, o tempo se encarrega de unir improváveis.

E é aí que entra nossa reflexão sobre sororidade. A aproximação dessas duas mulheres de lugares sociais distantes e diferentes, não poderia ser tranquila e sem obstáculos. O cansaço de Brenda se choca com o vazio de Jasmine. Há uma resistência da parte de Brenda e uma incompreensão da parte de Jasmine. E durante boa parte da estória esses são os principais elementos que compõe a parede de vidro entre as duas. Mas a maternidade( ou a ausência dela) é a primeira responsável por rachar essa parede. Ao surpreender Jasmine com seu neto no colo e seus filhos ao redor dela, encontrando o carinho e a atenção que ela não tem condições psicológicas para dar( porque provavelmente não recebeu), Brenda tem uma atitude brusca e retira a criança dos braços da alemã. Ao perguntar pelos filhos de Jasmine, a resposta negativa acompanhada de uma ligeira melancolia toca o coração de Brenda. Daí em diante, as distâncias enormes vão diminuindo cada vez mais, dando lugar a uma amizade transformadora. Jasmine enxerga que por trás da rusticidade de Brenda, existe uma mulher incompreendida, sufocando dores para poder sobreviver e sem ter um ato de empatia daqueles com quem convive. Acho importante pensar sobre como as construções de estereótipos limitam até as manifestações de apoio e apreço. É sempre muito mais fácil, encontrar atitudes carinhosas e de apoio direcionadas a mulheres brancas do que as negras. Isso se deve a construção racista e machista que confina mulheres negras no lugar da autossuficiência, daquela que está para apoiar e não para ser apoiada, daquela que não precisa de amor e estímulos emocionais positivos para lidar com suas dores e dificuldades pessoais. Quando falamos em solidão da mulher negra, é disso que estamos falando também. Jasmine não tem muita dificuldade para estabelecer contato com as pessoas, para ser aceita, pois a construção de feminilidade dada por uma “doçura essencial”, por uma delicadeza nata facilita as coisas. E o grande problema disso tudo é que para um estereótipo se sustentar ele precisa do outro, formando uma polaridade que pode até não ajudar mulheres brancas como parece mas, prejudica profundamente as relações sociais de ( e até entre)mulheres negras. Enquanto Jasmine faz por Brenda o que todas as pessoas que convivem com ela não são humanas o bastante para fazer, ela descobre um novo sentido para sua vida e novas formas de ser feliz. A mágica (the magic) que Jasmine aprende é uma brilhante analogia do diretor e roteirista para o entendimento sobre como a liberdade de sermos quem somos é vital. É isso que acontece com ambas, simultaneamente. Elas empoderam-se, não dentro de uma perspectiva assistencialista ou hierárquica dada pela branca que salva a negra. Empoderamento não se dá por uma ação verticalizada, onde quem “tem poder” dá a “quem não tem”. Empoderamento é horizontal e por inspiração entre pessoas no mesmo nível. Elas empoderam-se pelo contato com a realidade uma da outra, somada ao apoio emocional que passam a trocar na mesma medida e que serve de trampolim para um mergulho íntimo de ambas. Desse mergulho elas resgatam o que tem de melhor para oferecerem a si mesmas e transformam a realidade que as cercam. Quando Jasmine volta de um período de ausência, o encontro das duas mostram que mudanças estruturais são permanentes e só evoluem. Há respeito ao tempo de cada uma, não há competições e nem invasões de espaços sociais sem prévio acordo, não há imposições ou julgamentos(mesmo quando Brenda desconfia de Jasmine!). A amizade vai acontecendo e a colaboração vai crescendo. Creio que possamos chamar isso de sororidade Creio que podemos chamar isso como o início de processos individuais e coletivos de empoderamento, já que tudo ao redor ganha novos contornos, mas suaves e prósperos. Não existe empoderamento que não seja simultaneamente individual e coletivo. Não existe sororidade que impõe aproximações acríticas em nome de uma suposta luta. Quando as duas se reencontram, ambas estão de pé, felizes, mais bonitas, mais livres e sorridentes. E Jasmine está com sua verdadeira bagagem.

Além de uma história tocante e que dá pano para muita reflexões sobre a vida, delicadamente compondo um roteiro primoroso e sem enrolações, Bagdad Café tem uma belíssima fotografia, que diz nas entrelinhas que a secura caótica do deserto fse instala nas relações humanas de maneira sorrateira e imperceptível para aqueles que vivem dentro da caixa social. A linda trilha sonora, com variações da música “Calling You”, composta por Bob Telson e cantada pela Jevetta Steele, indicada para o Oscar de melhor canção em 1989, tem uma letra que é a cereja do bolo: eu estou chamando você, mas você não consegue me ouvir. Quantas pessoas te chamaram e você não conseguiu ouvir?

Brenda de alguma forma chamava, mas só algúem que que veio de fora, com dores equivalentes às suas, pode ouvir.

1Referência a música Selvagem da banda Os paralamas do sucesso, em um verso que diz ‘ os negros apresentam suas armas/as costas marcadas, as mãos calejadas/ e a esperteza que só tem quem tá cansado de apanhar’

link para ver o filme online dublado em português

https://gloria.tv/video/i6jRGzWephYP1cDMc2kjzcRBQ

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