Banalidade do mal e pitadas de psicopatia

O fenômeno Momo é mais do que pegadinha de adolescentes inconsequentes

Luan Oliveira
Revista Subjetiva
4 min readMar 18, 2019

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Abro o aplicativo de notícias e vejo novamente a figura toscamente medonha da Momo. Não vou acrescentar imagens, vocês sabem do que se trata — a escultura japonesa que se tornou febre na internet já está passando dos limites do problemático. A discussão da vez é a presença da figura em vídeos do YouTube Kids e até brotando em episódios de desenhos animados adulterados.

A figura surge dando ordens: mate, corte, perfure. Seguido de algumas ameaças, como levar os pais do infante embora à noite — caso falhem em cumprir ordens. Parece idiota, mas crianças não são célebres por sua genialidade. Há uma linha de investigação na polícia argentina que vê uma conexão entre o suicídio de uma menina de 12 anos com o desafio.

A menina Bianca, que de acordo com os pais entrou em choro convulsivo após contato com a figura // Divulgação

É um assunto inóspito, falar sobre a Momo é a mesma coisa que falar sobre o Pé-Grande: virou assunto de velho ou de criança. A criatura foi mistificada — uma lenda das redes. E aqui deixo minha crítica para a cobertura da mídia do acontecimento: trataram o fenômeno como uma suposta criatura que habita a rede e se alimenta de criancinhas. “A Momo é vista”, “A Momo mandou”. Personificaram, deram nome e moldaram o boi.

É importante ressaltar que tanto no caso da menina que se suicidou na Argentina, quanto nos episódios adulterados de Peppa Pig no YouTube Kids, alguém estava dando as ordens. Vídeos não se editam, mensagens não se enviam sozinhas — até em casos de robôs agindo na rede, alguém precisa ter os criado.

E aqui iniciam-se os debates sobre a banalidade do mal — na concepção de Arendt, mesmo. Talvez seja engraçado para um grupo de pessoas pregar uma peça em criança, e vou presumir aqui que esse grupo de pessoas sejam adolescentes. Mas até que ponto um susto é uma brincadeira? Avançar um passo é começar a falar em morte, conceito tão abstrato e tenebroso para adultos e jovens igual.

Procure algo nas coisas do papai e da mamãe e se corte bem fundo, senão levo eles de noite. Foi algo dessa natureza que foi transmitido para Bianca, a menina que chora na imagem acima, durante um vídeo de Slime direcionado para ela por scripts do YouTube Kids. Ela chorava e não dormia fazia dias — tinha medo de falar o que tinha visto e sofrer represálias pela mulher-pássaro.

Pela distância segura de um monitor de computador, a brincadeira parece engraçada, inofensiva. Vamos colocar isso no meio de um vídeo da Peppa Pig. Mas a realidade pode trazer uma tonalidade um pouco diferente. O mal, quando perpetrado nas redes, não parece mal. Não enquanto não se coloca no lugar do outro, quando pensa em uma infância carregada por trauma ou — no pior dos casos — encerrada de forma tosca e trágica.

Começamos com comentários maldosos nas redes, depois vírus que invadem os computadores das pessoas e não devolvem acesso enquanto certa quantia não for paga. Perfis falsos, porn revenge, chegamos agora ao ponto onde crianças são sequestradas de sua inocência e dadas um fardo que — real ou não — parecem bem pesados para elas.

A polícia não tem o mínimo interesse em caçar o Pé-Grande, não é de se surpreender que não estejam muito preocupados em descobrir quem são a Momo. Precisamos tratar assuntos reais como reais, não importa se eles se manifestam de forma estranha ou intangível.

Não se procura saber quem são os indivíduos responsáveis pela difusão do mito online — e não falo aqui de uma organização criminosa. Estamos em tempos globalizados, dispersos, qualquer um pode se apoderar de uma imagem na internet e fazer uso dela a seu bel-prazer. Anonimato na rede é uma mentira, e as ações tomadas na internet tem consequenciais na vida real.

Enquanto tratarmos Momo como o Pé-Grande e levarmos sua existência como algo mítico, não vamos colocar um ponto final nessa história. Enquanto não houver investigação ativa da polícia para encontrar os responsáveis por cada caso individual e gerar conscientização de que a rede não é um universo isolado sem repercussão no mundo sensível, mais Momos vão surgir — e isso é apenas um dos primeiros capítulos do que pode ser uma longa história de uma nova Banalidade do Mal. E uma bem mais difícil de lidar.

Atualização 19/03–16:59: o YouTube informou em nota que não há registros em sua plataforma para crianças de conteúdos relacionados à Momo. De acordo com país de jovens que afirmam ter sido expostos ao conteúdo, os vídeos foram apagados após denuncias feitas pelos responsáveis. A plataforma, porém, dá a entender em seu comunicado que não recebeu denúncias e, portanto, tais vídeos nunca haveriam existido. Talvez nunca saberemos.

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Luan Oliveira
Revista Subjetiva

Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever.