Berserk, Marcas e Sobre Continuar

André Arrais
Revista Subjetiva
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8 min readJun 12, 2019
Divulgação: VIZ

[TW: Depressão, Suicídio]

É interessante, a princípio, se colocar em perspectiva que eu não curto tanto assim animes.

Veja bem, consigo ver os méritos da mídia, até fui um grande fã de Naruto/Bleach durante uma época onde ainda era praticamente uma criança e precisava algo pra substituir umas porradinhas por outras. Parto do princípio que todo mundo precisa de alguma peça de entretenimento que seja suficiente para lhe dar algum tipo de dose boa de escapismo pra ser feliz, se pra ti é os animes, maravilha, não acho que seja interessante nesse momento discutir a mídia.

Ainda assim, por mais que eu não seja um fã, conheço algumas coisinhas sobre, afinal, tenho amigos que amam e sempre comentam a respeito comigo, mas tinha uma obra que sempre rodeou pelo meu conhecimento e nunca dei a devida atenção. Todo mundo elogia essa obra em especial e mesmo os críticos mais ferrenhos tem dificuldade de dizer que é ruim, dado seu impacto cultural na industria de mangá e suas influências fora do círculo dos que amam.

De qualquer forma, eu peguei a versão antiga do anime e deixei rodando um dia desses chuvosos de domingo que se pega aquele filme/série/livro que tanto se protelou e decide que hoje é o dia, mas claro, não rolou. O começo, ao meu ver, era extremamente chatissímo e não terminei. Algumas coisas não foram feitas para se apreciar em determinada época. Destino ou não, ele retornaria em outro momento pra então, fazer sentido.

Divulgação: The Crab-Flower Club

Em 2017, eu estava terminando meu ensino médio e paralelamente, na reta final, meu relacionamento amoroso que já começava a desmoronar, começava a enfim acabar. Depois de meses de discussões acaloradas, de estresse, de surtos nervosos, ansiedade gravada e uma sensação de desespero por estar começando a ficar abusivo, me encontrei não só na posição de terminar meu namoro, da qual nem eu e nem ela queria que terminasse, mas logo após anos de desleixo com a minha saúde mental viesse cobrar o preço. Numa manhã de terça feira do que suponho que fosse Outubro, eu não tinha forças para levantar. Não vontade, força. Não havia fibra do meu corpo que tivesse capacidade de me colocar para fora da cama e parecesse como um ser humano. Era meio difícil esconder os olhos fundos e sem emoção.

Por sorte, já tinha acompanhamento com um psiquiatra devido aos meus problemas de ansiedade e compulsão. Ao chegar, marcado em cima da hora devido a situação extraordinária, eu expliquei, com linhas gerais, que não tinha energia. Estava exaurido e profundamente deprimido, que queria apenas escorregar na poltrona e sumir. O diagnostico não foi muito difícil de ser feito. Ansiedade, compulsão e agora, depressão. Vendo agora, sabendo que minha família por parte de mãe e pai sofrem de depressão, não deveria ser uma surpresa, mas ainda assim, foi surpreendente pra alguém que, no máximo, tinha lapsos de tristeza.

É engraçado como sua vida meio que muda depois de que, você vai de pessoa usualmente melancólica pra depressão profunda e como a vida, se antes tinha lentes cinzas, agora só é um grande vórtex negro. Você se torna um com sua cama ou sua cadeira, vaga pela casa como uma assombração para fazer coisas simples como só tomar água e ir ao banheiro, e ainda isso é extremamente dificultoso. Nada tem sabor, calor ou gosto, é como se tornar um fantasma caminhando entre os vivos.

De qualquer forma, meu bom doutor me deu 15 dias em casa e uma receita pra antidepressivos porque vontade própria não iria me levar muito longe, além do mais, precisava terminar o ensino médio e tinha provas na época para prestar.

Certo, eu tinha pouca energia, não queria sair do quarto e tinha uma porrada de coisas no computador pra ver. Precisava de algo pra fazer o tempo passar entre um sono e outro, afinal, era o que eu fazia, dormia mais de 12 horas e não tinha capacidade de dormir 24h, por mais que eu quisesse bastante. Portanto, achava que valia a pena retornar para aquele anime que tinha achado chato.

E então, Berserk retornava.

Divulgação: Saru Drop

Berserk é um mangá de Kentaro Miura que, publicado desde 1989, continua como uma série longeva que só agora começa a dar traços de um final esperado extremamente esperado e que honestamente precisa terminar logo, mas pra mim, meu primeiro contato com a obra foi a série animada inciada em 1997 e com final em 1998, que reconta o arco da qual o mangá é mais lembrado e elogiado até hoje.

Antes do mundo medieval dominado por demônios e Guts (ou Gatts, personagem central) se tornar algo próximo de um animal violento, houve um período de uma pálida luz na vida deste homem, na qual, ao lado de Caska e Griffith, ele fazia parte do Bando do Falcão. A premissa do Arco de Ouro é essa, contar a história destes três personagens, mas dando um destaque maior entre Guts, que naquele ponto, era somente um mercenário que pulava de batalha em batalha pelo prazer de lutar e Griffith, o líder desta tropa de mercenários que tinha um sonho de, um dia, ser rei dentro do contexto clássico desta versão da Europa dentro da Guerra das Rosas, onde aqueles que nasciam miseráveis nunca ascendiam as castas elevadas. De batalha em batalha, este grupo começa a fazer sua escaladas, neste ínterim, pela primeira vez, Guts se sente dentro de um grupo que valoriza e Griffith encontra alguém com quem se sente dependente.

Divulgação: Reddit

Desde o começo, no instante que o anime abre e o mangá também, lhe é dito que essa história é uma tragédia que são só se monta aos seus olhos, como já aconteceu, mas é quase inevitável se pegar torcendo por aqueles personagens. Que Guts, em seus conflitos, consiga achar seu próprio sonho e que Griffith consiga atingir seus sonhos. A princípio, meu olhar imediato (e acredito que de todos) era focado no personagem do Griffith. Daquele ser que parecia não só ser capaz de ser capaz de vencer qualquer empreitada, como igualmente destinado a prevalecer, como é fácil se pegar preso no sonho daquele homem e como é igualmente fácil se ver torcendo para que este tenha sucesso, mesmo com seus meios tortos, o que torna ainda mais difícil ver como esse sonho lhe leva cada vez mais longe e o torna mais impetuoso, quando não, imoral na busca de não só permanecer nesse caminho, mas em ter algum controle sobre Guts.

Claro, como antes eu tinha dito, nada aqui foi feito pra durar e estes personagens encontram seu ápice, antes de cada um cair, mas principalmente, Griffith. E ao trazer consigo um horror que acho que só quem se permite ver o Arco de Ouro sabe do que estou falando. Após o final, minha atenção foi dele pra outro personagem e era justamente o personagem que estava conduzindo essa história, que era o Guts, por motivos do quais não pensei a primeiro momento.

Permanecendo o máximo de spoiler free, afinal, a intenção não é esmiuçar a obra, e sim, manter ela o mais aberto para que quem queira tenha a oportunidade de ter essa mesma jornada emocional (com algumas restrições e problemáticas da qual não tenho propriedade para discutir), o personagem do Guts é alguém cuja a palavra tragédia e destino parece mais atrelada, desde o nascimento e de sua trajetória enquanto pessoa que, se antes parecia apenas um guerreiro bronco com gosto por sangue, se torna mais e mais melancólico. Ao final do anime, é deixado a entender que, devido ao conjunto de eventos que se ocorreu ali, Guts e Caska estão marcados para morrer, são sacrifícios e a mera existência deles após aquilo é um milagre.

A depressão se tornou algo que já não me prendia a cama nesses 15 dias, tive o apoio apropriado de familiares, amigos e professores, os medicamentos me seguiram por algum tempo, até que finalmente consigo dizer que não preciso deles para me manter de pé. Claro, tive algumas decaídas muito profundas e a ideia de me matar foi algo presente durante algum tempo, até houve-se, de fato, algumas tentativas. Soava natural, não? Não havia perspectiva de futuro, logo, para que estar aqui? É só profundamente cansativo permanecer seguindo em frente quando tudo lhe empurra de volta para aquela mesma situação onde tem um cinto no seu pescoço e apenas uma vontade que tudo se encerre o mais rápido possível. Sair pela portas do fundo. Sem cerimônias. Mas a ideia de alguém que, marcado para morrer, persiste em continuar vivo cresceu em mim mais rápido do que eu poderia prever. Arte é algo fascinante, não? Um personagem fictício sendo capaz de inspirar alguém.

Se fosse para acreditar na ideia de determinismo, era para eu estar morto há mais de um ano e mesmo com as fantasias, a ideia de lutar contra esse “destino” foi o que me colocou em um ponto onde pude conseguir cooptar com a doença, a vontade de morrer e todos esses “demônios’’ que a depressão me trouxe. Não posso colocar esse mérito todo, mas é possível dizer que, em algum grau, Berserk salvou a minha vida e me permitiu continuar navegando contra a corrente.

Divulgação: skullknight.net

Viver não é exatamente a mesma coisa depois da depressão. Não tenho exatamente energia para coisas que antes me era natural, por vezes ainda me encontro no ponto da apatia e do profundo desânimo, mas acho que é possível dizer que encontro capaz de aproveitar os doces que a vida me dá por vezes e que mesmo marcado para sempre por uma doença mental que vai procurar me derrubar quando menos espero, sei que estou lutando com ela com o que tenho e como posso. Não é uma batalha que se vence, mas é uma que se ganha só de permanecer nela.

Um dia de cada vez, uma luta por vez.

P.S.: Para aqueles que, por ventura tiveram interesse no anime e/ou mangá, deixo logo de aviso que contém passagens extremamente delicadas, algumas em particular problemáticas envolvendo estupro, portanto, para pessoas sensíveis, recomendo cuidado ao assistir.

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André Arrais
Revista Subjetiva

Graduado em Direito, escritor e invariavelmente cansado.