Black Mirror 4x04 — Hang the DJ: O diálogo e a arte de falar por outras palavras

Yann Rodrigues
Revista Subjetiva
Published in
10 min readJan 10, 2018

*Nota: essa é uma série de análises aprofundadas em aspectos técnicos sobre a quarta temporada de Black Mirror, feita para a Revista Subjetiva a convite do editor Lucas Machado. O texto contém spoilers sobre o quarto episódio da quarta temporada de Black Mirror.

Você fala uma coisa. Ele ou ela fala outra. Só jogam conversa fora. Nada do que vocês falam é muito relevante. Ao mesmo tempo, tudo é.

Estou descrevendo uma convenção de diálogos de roteiro ou um flerte entre duas pessoas? Tanto faz.

FRANK

Oi. Ah, oh.

O garfo na mão de Frank cai. Ele o pega desajeitado e cumprimenta Amy.

FRANK

Me desculpe. Garfo.

AMY

Amy.

FRANK

Não, não, meu nome não é garfo.

AMY

Imaginei.

FRANK

É que… Sou o Frank.

AMY

Você quer sentar? Podemos sentar? Acho que é isso ou ficar de pé.

FRANK (ri)

Vamos sentar, então?

Na cena acima, o roteiro está construindo os protagonistas do episódio. Frank é inseguro, desajeitado. Amy é segura e paciente. Além de bem-humorada. Essa pequena troca termina com Frank rindo da piada de Amy sobre ficar de pé. Então eles se sentam e seguem outra conversa. Com a risada, o roteiro constrói a primeira conexão. Ele reage bem à piada e paciência de Amy. O problema do garfo não foi um problema.

Imagine Nicola, o segundo encontro de Frank, na mesma situação. Como seria a reação dela? Falar que detesta idiotas ou desajeitados. “Uh, um cara que derruba tudo”.

Quando pessoas estão se conhecendo, o que falar é uma das questões que mais causam nervosismo. A continuação da cena anterior é essa:

FRANK (ri)

Desculpe. Estou muito nervoso. É minha primeira vez no, você sabe, o sistema.

AMY

É a minha também.

FRANK

Sério.

AMY

Sim, estou me borrando.

FRANK

Agora que você mencionou, você parece aterrorizada.

AMY

Estou?

FRANK

Sim, tremendo de medo.

AMY

Ou talvez de repulsa?

FRANK

Pelo menos você parou de se borrar.

AMY

Ah! (Ri) Tem certeza disso?

Parte do nervosismo é causado porque não podemos dar alguns passos. Perguntar “você gosta da sua mãe” ou “seu pai é alcoólatra” não cai bem em um primeiro encontro. Queremos absorver o máximo de verdades sobre a outra pessoa, entender se vale a pena a tentativa com ela, mas não podemos ser tão diretos. Tomamos, então, o caminho mais longo, pelas beiradas.

Um roteiro precisa absorver essas preocupações para que a história seja verossímil. Regras de ouro como “mostre, não conte” ou que personagens são definidos por ações são convenções valiosas. No entanto, imagine uma história de amor onde os personagens vivem de demonstrações, provas e juras, sem uma única conversa?

Pode ser possível, mas dificilmente soará real.

Hang the DJ trabalha a verossimilhança muito bem. Quando assistimos ao episódio, pensamos que Amy e Frank tem uma química incrível. Atribuímos isso à atriz e ao ator automaticamente. Eles são grandes responsáveis, claro. A química, no entanto, nasce no roteiro.

Na primeira parte da cena destacada, conhecemos o humor de Amy. Na segunda, uma vez que eles se sentam, o roteiro nos dá o humor de Frank. As duas pessoas compartilham a mesma característica. Isso é conexão, o primeiro passo para sentirmos uma química ali. É quando falamos que fulana e ciclano “combinam”.

Essa combinação é marcada especialmente no fim da troca, antes de pedirem os pratos.

FRANK

Pelo menos você parou de se borrar.

AMY

Ah! (Ri) Tem certeza disso?

Amy já havia feito Frank rir. Quando o contrário acontece, ambos chegam ao mesmo nível. São capazes de gerar a mesma reação positiva um no outo. Química. Estabelecida em um garfo caindo e piadas sobre se borrar.

O espaço comum entre romance e plot twist

A princípio, romance e plot twist parecem bem diferentes. Muitas vezes, a última coisa que queremos é um plot twist em uma história de amor. Queremos mesmo é que o casal para o qual torcemos fique junto. Viradas malucas, só se for para apoiar esse fim.

O episódio cumpre esse papel. Contudo, na escrita do roteiro e, por consequência, nos diálogos, a técnica de falar indiretamente também é a mesma. O roteiro deixa pistas de um plot twist nas entrelinhas, como uma pessoa em um encontro também faz sobre si e busca no outro.

Em Hang the DJ, a virada é descobrir que o casal está em uma simulação. O Tinder versão Charlie Brooker (criador da série) monta 1000 simulações. Caso as duas pessoas se rebelem contra o sistema 998 vezes em 1000 tentativas, o aplicativo atribui uma pessoa à outra com 99,8% de “match”.

Portanto, o sistema premia casais que se rebelam contra o sistema. Bem Black Mirror.

FRANK

Posso provar um pouco? Temos permissão para fazer isso? Foda-se.

AMY

É, foda-se.

Essa conversa é a primeira pista sobre a rebeldia, portanto, sobre o plot twist. Isso acontece o tempo todo, em momentos escondidos, muitas vezes nas próprias palavras usadas em inglês. Como aqui:

AMY

Devia ser uma loucura antes do sistema.

FRANK

Como assim?

AMY

Bem, as pessoas precisavam resolver os relacionamentos sozinhas, decidir com quem elas queriam ficar.

FRANK

Excesso de opções.

AMY

Tantas escolhas, você acaba não sabendo qual você quer.

FRANK

É, exatamente, e se as coisas ficarem mal, elas teriam que descobrir se queriam terminar com alguém.

Aqui, o roteiro usa a expressão “break up with someone”, cuja tradução imediata é “terminar com alguém”. Porém, olhando para o episódio, a segunda interpretação disponível é: se rebelar com alguém, quebrar o sistema com alguém. Exatamente o teste que a simulação pretende com o casal.

Nessa outra cena logo após o primeiro encontro dos protagonistas, Frank conversa com a “conselheira”:

FRANK

Mas como eu sei que ela não era perfeita pra mim? Ela era…

APARELHO

Sua parceira com perfeita compatibilidade ainda não foi selecionada.

FRANK

É, eu sei, mas…

APARELHO

O sistema ganha percepções à medida que cada participante progride por uma série de relacionamentos e usa os dados recolhidos para eventualmente selecionar a parceira com perfeita compatibilidade.

FRANK

No seu dia da escolha, eu sei, e sempre encontra seu par perfeito.

APARELHO

Em 99,8% dos casos.

FRANK

Mas eu tenho que passar por inúmeros relacionamentos para encontrá-la.

APARELHO

Está correto.

Onde eu traduzi “inúmeros relacionamentos”, o roteiro utiliza “loads of relationships”. “Loads of” seria “cargas de”, dando sentido de “muitos”. “Load” é o inglês para carregar, muito usado no sentido digital. Como na tela com a mensagem de “loading” que estamos acostumados a ver. Uma relação condizente com uma simulação.

Esse tipo de dica sutil acompanha o episódio em todos os diálogos, nos alimentando com a “verdade” da narrativa através de um subtexto. Em alguns momentos, as dicas ficam mais explícitas (o que não significa necessariamente mais óbvias). É o caso a cada vez que vemos Amy tacar pedras no lago, sempre quicando quatro vezes. Em especial quando Frank joga e a pedra também quica quatro vezes. A pista mais explícita está na própria interação do casal, após se reencontrarem.

AMY

É. E se não houver avaliação, o sistema está só nos juntando em qualquer ordem e simplesmente seguimos porque estão sempre nos dizendo quão esperto isso é?

FRANK

É, mas ele junta as pessoas com seu parceiro ideal. Tem uma taxa de sucesso de 99,8%.

AMY

Mas como você sabe que são pares perfeitos? Quer dizer, e se tudo que estiver fazendo é só nos deixar para baixo, nos colocando em uma relação após a outra por durações aleatórias em uma sequência aleatória? Cada vez você fica mais flexível, um pouco mais quebrado, até que eventualmente uma oferta final é cuspida e diz-se que é a perfeita.

E nesse ponto você está tão derrotado e exausto que você só aceita isso, se acomoda.

E então você vive o resto de sua vida se convencendo que não se acomodou.

FRANK

Parabéns. Essa é uma das coisas mais tristes que já ouvi.

AMY (ri)

Obrigada.

FRANK

Certo. Quer saber minha teoria? Vamos assumir que o sistema não é aleatório. É tão sofisticado quanto dizem.

AMY

Ok.

FRANK

Certo, então usando esses aparelhos, eles absorvem todas as suas reações, né? Constroem um perfil complexo.

AMY

Aham.

FRANK

Todos os pensamentos loucos que você já teve, seus sonhos e fraquezas e — e suas teorias malucas.

AMY

É, tudo na sua cabeça.

FRANK

Certo. Então se está tudo na sua cabeça — será que o sistema tem pensamentos?

AMY

Então tá, agora você vai dizer:

(imita o sotaque de Frank)

“E se o aparelho for nós mesmos e isso tudo for uma simulação?”

FRANK

Bem, como iríamos saber?

Amy dá um beliscão em Frank. Ele solta um ganido.

AMY

Acho que isso resolve o problema.

FRANK

Eu posso ter sido programado para sentir o beliscão.

Nessa cena, a reação natural é embarcarmos na ideia de Amy e, quando Frank diz sua teoria, a rejeitamos como uma loucura, exatamente como Amy fez. Ficamos tão embarcados em uma história de amor que esquecemos do modus operandi de Black Mirror.

Quando chegamos ao fim da narrativa, percebemos que Frank estava certo o tempo todo. Sua teoria casa com todas as outras dicas dadas no episódio, seja visualmente (as pedras no lago) ou nas falas e diálogos.

O que acho mais interessante dessa conversa é que, uma vez que ficamos convencidos de que Frank estava certo, tendemos a desconsiderar a fala de Amy.

Essa tendência vai contra tudo o que falamos nesse texto. O subtexto de Amy, sua teoria, não foi colocada à toa. Devemos continuar considerando a dela ao mesmo tempo em que consideramos a de Frank.

Afinal, toda a ideia de simulação serve a um propósito. Cópias de cada pessoa são basicamente torturadas em 1000 simulações. São jogadas de um relacionamento ao outro em ordens aleatórias, em ambientes distópicos e monótonos, para que a pessoa do mundo físico não passe pelo sofrimento da escolha. Mas o mundo real não é como o mundo das simulações. No digital, não há o trabalho, a mesma rotina, as mesmas dores e sofrimentos.

Então, quem garante que, mesmo passando pelas 1000 simulações com 99,8% de sucesso, aquele casal aprovado é um par perfeito? Após o apontamento de um aplicativo tão foda, qual o incentivo para a pessoa se acomodar? Será que ela consideraria um término em um momento de dificuldade, ou confiaria nas simulações do aplicativo?

No fim, fica a metalinguagem do título do episódio com a música de seu final. Hang the DJ é uma faixa dos anos 80, de uma banda que eu não conhecia e que vou continuar sem saber muito sobre. A letra diz:

Queime a discoteca

Enforque o abençoado DJ

Porque a música que toca constantemente

Diz nada para mim sobre minha vida

Enforque o DJ, enforque o DJ.

Na década de 80, isso era uma poesia anti-sistema. Sistema é o DJ, no caso. Enforque-o e você sai premiado com seu par perfeito. Será?

A simulação que o aplicativo roda constantemente diz nada para mim sobre minha vida. Bem, essa foi a letra que eu ouvi ao fim do episódio, pelo menos.

Agora vou soltar umas fotografias bonitas e relevantes do episódio para não perder o costume. O próximo é Metalhead, e parece que esse é polêmico. Até a próxima!

O primeiro plano do episódio mostra Frank com um anoitecer ao fundo. A mudança de fase do dia pode representar o “nascimento” na simulação. Como os personagens dizem depois, eles não lembram de nada antes do primeiro encontro.
O vermelho, cor da paixão, domina o fundo no primeiro encontro entre Amy e Frank.
Quando ambos saem em outros encontros, o vermelho sai do fundo.
Voltando ao primeiro encontro, a câmera procura manter os dois juntos na tela a maior parte do tempo, o que reforça a conexão entre eles. O mesmo não ocorre nos outros encontros, quando a câmera evita deixar as duas pessoas ao mesmo tempo em tela.
Amy especialmente tem uma relação mais próxima com o sexo, reforçada em muitos momentos no episódio. No primeiro encontro, porém, ela buscou conexão antes do sexo. A conexão já se inicia nos travesseiros amarelos, ligando as cabeças de Amy e Frank. Então ela procura sua mão, em seu gesto característico, repetido por toda a narrativa.
Com as mãos dadas eles sentem algo especial. A conexão não é só entre suas mentes, também é entre seus corpos (travesseiros e mãos dadas)

Sobre a imagem acima, Amy busca essa mesma conexão com as mãos em vários parceiros. Ela não fica satisfeita, não tem a mesma reação, o que é mostrado nos closes que ela recebe logo após o gesto. Outra coisa mostrada para reforçar a falta de conexão é que, com nenhum outro parceiro, acontece a ponte entre os travesseiros como nessa cena.

Mesma coisa com Frank. Prometo, pode procurar.

Frank cruzando as linhas que o limitam no squash. Ele é o primeiro a sugerir a rebelião contra o sistema no episódio.

Esses são alguns exemplos. Sempre há muito mais para observar. Quais são as suas impressões?

Se você gosta desse tipo de análises, te convido a conhecer o meu site Além do Roteiro!

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