“Boas meninas não fazem perguntas”: ficção ou realidade? | #LeiaComASubjetiva

Carol Vidal
Revista Subjetiva
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3 min readSep 24, 2019
Foto Carol, Vidal

Na atual conjuntura que estamos vivendo, com governos de extrema direita no poder e preconceitos de todas as ordens tratados como banalidades, as distopias estão se tornando cada vez mais reais. O que antes seria tratado como ficção, uma possibilidade bem longínqua de se tornar verdade, bate à nossa porta como um fantasma perigoso. Um desses livros que quase poderiam ser relatos de não ficção é o “Boas meninas não fazem perguntas”, de Lucas Mota.

Lançada de forma independente, a obra é ambientada em uma sociedade em que, baseada em descobertas científicas controversas, as mulheres se tornaram produtos e são vendidas em lojas. Elas são proibidas de saírem às ruas e usam coleiras que dão choque caso ultrapassem os limites permitidos. E é através de uma dessas mulheres que vamos acompanhar o desenrolar da trama.

Marina, a todo momento, questiona o status quo e planeja fugir da loja para onde foi vendida por seu pai. Na tentativa de conseguir aliadas, vamos conhecendo um pouco mais da realidade dessas mulheres e as condições em que vivem — com todo tipo de humilhações.

O aspecto mais interessante do livro é mostrar mulheres com diferentes visões sobre a realidade delas: há quem aceite e ache certo, há quem use as regras a seu favor, há quem ria na cara do perigo para provar o absurdo da situação. Lulas Mota foi muito feliz na criação dessas personagens, pois todas têm profundidade e acrescentam camadas à narrativa. E essas diferenças são tão bem apresentadas, que conseguem despertar em quem lê diferentes sentimentos, que vão mudando conforme a história avança e é possível entender melhor a motivação de cada uma.

“Boas meninas não fazem perguntas” bebe muito da realidade atual para construir sua trama, apenas levando a subjugação das mulheres a um novo nível (que esperamos não se tornar realidade). De forma muito inteligente, o autor aborda preconceitos super relacionáveis com o que nós mulheres enfrentamos atualmente: o racismo, a necessidade de se encaixar em um padrão, de não desafiar um homem, de “saber o seu lugar”.

A diversidade das personagens também ajuda a tornar esses preconceitos mais evidentes: Marina é gorda e Helen (a amiga que a protagonista faz na loja) é negra, por exemplo. O mais interessante é que as mulheres que Marina vai conhecendo tiveram diferentes experiências e passados, que mostram de forma ainda mais contundente a crueldade dessa sociedade, que vai desde a forma como as mulheres são tratadas dentro das famílias até que tipo de pesquisas científicas foram autorizadas a submeterem as mulheres.

Dá para perceber que o livro foi pensado em todos os detalhes, o que só enriquece a experiência de leitura. Cada capítulo é nomeado com uma frase que nós mulheres estamos cansadas de ouvir, tais como “Você tem que segurar seu homem” e “Que roupa ela estava usando?”. Há também interlúdios com trechos da tal pesquisa científica que legitimou o comércio de mulheres, também muito bem elaborado, dando mais força à história que está sendo contada. Fica claro que, do jeito que nossa sociedade está estruturada, não é impossível que surjam pesquisas como as abordadas no livro, que queiram provar geneticamente a inferioridade feminina.

A parte gráfica do livro também merece destaque. Todo o trabalho é muito bem feito, desde a capa, até os detalhes de diagramação. Uma dica: prestem atenção no símbolo que divide alguns parágrafos ao longo do capítulo; ele muda quando há uma virada na trama. São detalhes como esse que enriquecem a experiência.

No início, o livro tem um ritmo mais lento, com muitos parágrafos explicativos para situar o leitor na ambientação e regras daquele mundo. Isso torna a leitura um pouco lenta e cansativa, mas logo a história ganha fôlego e segue assim até o final, que é eletrizante e de tirar o fôlego.

“Boas meninas não fazem perguntas” é um relato assustador do que já somos e do que ainda podemos ser enquanto sociedade. A leitura serve como um alerta para a importância de combatermos com veemência discursos preconceituosos e violentos. Apenas um pequeno passo nos separa da realidade do livro e não podemos deixar que ela tome forma.

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Carol Vidal
Revista Subjetiva

Carioca que mora em Salvador. Escritora e podcaster que ama cozinhar (palavras e comidas). Conheça meu trabalho: linktr.ee/carolvidal_